domingo, 14 de outubro de 2018

Fórum Fantástico 2018: Escolhas Literárias


Este ano... faltei ao Fórum! Crime de lesa-majestade, bem sei, mas não consegui convencer a organização da Maker Faire Rome a adiar por uns dias o seu evento, por colidir com o imprescindível Fórum.Levo lá o meu querido Robot Anprino (hey, haverá algo mais fantástico para um fã de FC o ser pai de um robot? Não é um Robbie, mas mexe-se). Por isso, este, que se lhe permitirem a veleidade, é um dos velhos do califa, este ano partiu para Roma e feiras de tecnologia. Pelo menos, sempre dá para comprar mais uns Dylan Dogs.


No entanto, não quis deixar de listar as minhas escolhas anuais. Os livros ligados ao Fantástico que me tocaram, inspiraram ou faíscaram novas ideias. Com o destaque crescente para as edições em português. Vivemos num bom momento, especialmente no que toca à banda desenhada.

Ficção Científica e Fantástico em Português




Crazy Equóides, João Barreiros

Conhecedores da obra de João Barreiros sabem à partida o que esperar dos seus textos. Nunca desilude, e dá aos seus leitores aquilo que estes esperam dele. Barreiros tem uma fórmula de escrita apurada, com temáticas afinadas e personagens-tipo invariavelmente metidas em situações de comédia negra. Notem que é uma fórmula, inerente a qualquer processo criativo, não quero com isto dizer que Barreiros seja formulaico. Há uma diferença qualitativa assinalável entre encontrar e estruturar uma voz artística e repetir elementos seguros até à exaustão.

Este Crazy Equóides não escapa à fórmula, e ainda bem, que Barreiros tem-a bem afinada. Esta novela vai num sentido um pouco diferente. Foca-se na sexualidade, e vinda de quem vem, não esperem romantismos ardentes. Antes, temos uma civilização alienígena levemente centáurica com hábitos reprodutores peculiares, levados a um apocalipse provocado pelo desejo sexual induzido por um cuidadoso primeiro contacto com humanos. Um frenesim especialmente destrutivo. Temos Inteligências Artificiais gananciosas e amorais, humanos reduzidos à condição de serventes de IAs, e duelos mortíferos com mísseis termobáricos. Reparem que o conto foi escrito como âncora para uma antologia de FC erótica, que nunca chegou a ser publicada. Apocalipse ao estilo de João Barreiros é sempre qualquer coisa de extraordinário no seu âmbito.



O Algoritmo do Poder, Pedro Barrento 

No seu cerne, a ficção científica e especulativa não trata de prever ou imaginar futuros. A lente da FC não é um oráculo de Delfos, antes, é um espelho das pulsões sociais e culturais da sua contemporaneidade, alimentada pelo fascínio e possibilidades da ciência e tecnologia. Este tipo de especulação está no cerne de O Algoritmo do Poder. Apesar de estruturado como romance-périplo, um daqueles livros que pega nas mãos do leitor e o leva através do mundo ficcional (utilizando a definição de Aldiss em A Billion Year Spree), é em essência um longo infodump sobre a forma como Pedro Barrento vê algumas questões estruturais que já hoje caracterizam a sociedade global. Infodump, mas daqueles bem feitos, em que os dados que informam o leitor sobre as premissas do mundo ficcional são elementos da narrativa e não aqueles longos discursos onde um personagem perora longamente para nos ajudar a perceber as premissas do universo.

A olhar para um ecrã divido em várias janelas enquanto termino esta recensão, com um olho no editor de texto e outro no navegador onde vão passando as novidades que os algoritmos das redes sociais escolhem para o meu olhar, a partir do perfil da minha bolha de informação, percebo onde Pedro Barrento quis chegar com a sua distopia. Não podemos confiar cegamente em quem desenha os algoritmos. Nem correr o risco de perder a memória colectiva. Não leiam O Algoritmo do Poder como mais uma aventura distópica. Este livro é muito mais do que isso.



Tudo Isto Existe, João Ventura

A ficção de João Ventura situa-se num espaço muito próprio e pessoal entre humor e fantasia. As suas histórias, afiadas e bem afinadas como um instrumento de precisão, nunca nos deixam indiferentes, entre o sorrir pelo humor inesperado ou o sonho invocado. Parte do seu encanto reside no minimalismo de vinheta, aparentemente simples. Quando as lemos sentimos que têm o tamanho certo, não precisam de ser mais longas ou expandidas. É precisa uma enorme capacidade narrativa para se ser tão sintético e agarrar o leitor com ideias sempre intrigantes e inesperadas. Esta coletânea de alguns dos seus textos, uns inéditos, outros já conhecidos do público através do blog Das Palavras O Espaço, ou editados em antologias de contos de FC e Fantástico, dá aos leitores, finalmente, uma visão abrangente da capacidade literária de João Ventura. Um autor discreto, criador meticuloso de delicadas peças narrativas, curtos mas intricados mecanismos literários que não nos deixam indiferentes.



Comandante Serralves - Expansão, Rui Bastos,  Fernando Queirós, Ricardo Dias

Comandante Serralves é uma das mais interessantes propostas vindas da dinâmica Imaginauta. É, sem dúvida, ambiciosa. Combate o marasmo da FC portuguesa com a proposta de um mundo ficcional em universo partilhado, campo de ideias para qualquer escritor desenvolver as suas histórias. Depois de Despojos de Guerra, primeiro livro de contos da personagem, a Imaginauta dá-nos mais alguns contos que lidam com o herói space-opera português. O projeto não se fica pela literatura, já tem expansão através de um jogo RPG chamado Pouso Forçado. Suspeito que com mais meios, este projeto poderia enveredar por outros media. Seria interessante ver uma curta metragem, real ou de animação, passada neste universo.

Ficção Científica e Fantástico Internacional



Terms of Enlistment, Marko Kloos 

As influências da FC militarista de Heinlein são bem evidentes neste divertido Terms of Enlistment. A combinação de futurismo com fascínio pelo militarismo, esse clássico tema heinleiniano, sustentam o livro de Marko Kloos, escritor alemão residente nos EUA. No entanto, o tom da obra não segue a vertente clássica do heroísmo e dedicação à honra da causa marcial. O que leva os personagens a dedicar-se à vida militar não é uma vontade abnegada de atingir a glória, mas escapar a vidas sem sentido numa Terra com excesso de população. Kloos toca as teclas certas deste sub-género de FC. Tem uma capacidade narrativa sintética e decidida, mantendo o leitor agarrado à história, mesmo que seja previsível. A construção das personagens segue a iconografia típica da FC militarista, embora Kloos as mantenha sóbrias e não caia no exagero da apologia da violência ritualizada. Não sendo um livro extraordinário, é uma leitura leve e bem concebida.


Acadie, Dave Hutchinson

É raro um livro de FC nos apanhar de surpresa. Especialmente quando se trata de Space Opera. Este é um desses. Somos mergulhados num vórtice literário, num mundo ficcional típico do género. Estamos num futuro profundo, a humanidade espalha-se pela galáxia, e seguimos um grupo de renegados que quebram os grilhões legais da pesquisa genética para criar humanos geneticamente melhorados. Perseguidos pelas autoridades terrestres, constroem a sua utopia em sistemas solares considerados inválidos para colonização pelo gabinete que gere a expansão humana. Aí criam estações avançadas, com pessoas fortemente modificadas, mais inteligentes do que o humano-base, desenvolvendo tecnologias avançadas que mantém em segredo de uma humanidade que os persegue.

Ou então nada disto é assim. Estes renegados são perseguidos por crimes que cometeram, especialmente na manipulação genética forçada de colonos em naves capturadas, e os resultados são abominações físicas e anormalidades. A sua tecnologia é falível e primitiva, mas violenta, e tudo o que as autoridades querem é capturar os criminosos e salvar aqueles que caíram nas suas garras.  Este livro é deliciosamente curto e inconclusivo. Apetece ler mais, mas ainda bem que se mantém conciso. Onde outros escritores optariam por criar sagas em multi-volumes de calhamaços de páginas, esmifrando os mais ínfimos pormenores, Hutchinson mantém a história ao nível de rascunho bem definido. O resultado é um elevado nível de narrativa cativante, que provoca a mente do leitor a ir mais longe, imaginar os detalhes que faltam. Uma experiência literária mais imersiva do que o detalhar pormenorizado do mundo ficcional.



Project MARS: A Technical Tale, Wernher von Braun

Este é o tipo de livro que se lê como referência e não por gosto. A seu favor tem alguma plausibilidade científica, vinda daquele que foi um dos pais da astronáutica contemporânea. À luz da tecnologia e conhecimento científico da época, uma expedição a Marte nos moldes descritos no livro parecia possível, apenas uma questão de esforço financeiro e engenharia. Hoje sabemos que a questão da sobrevivência do homem em viagens espaciais não é assim tão simples. No que toca à Ficção Científica, este livro é verdadeiramente atroz. Essencialmente, é um longo infodump, cada capítulo é essencialmente uma explicação longa e especulativa sobre o como poderia ser uma missão a Marte. Até mesmo para alguém como eu, que adora infodumps, parece excessivo. No entanto, é de ressalvar que este livro não foi escrito com ambições literárias. O seu objetivo expresso é suavizar a dureza matemática da especulação científica através de uma fantasia. Este Project Mars é, como o próprio afirma no prefácio, uma forma suave de especulação informada, mostrando a sua visão de como poderia ser uma expedição a Marte com a tecnologia que o próprio autor estava a ajudar a desenvolver. Nesse aspeto, como retrato instantâneo de um momento na história da ciência, este é um livro interessante, embora os aspetos literários sejam fracos e algum ideário que lhe está subjacente ser incómodo.



Steampunk Internacional, George Mann,  Anton Stark, Derry O'Dowd, Diana Pinguicha, Anne Leinonen, Jonathan Green, J.S. Meresmaa, Magdalena Hai

A diversidade local, cheia de vozes interessantes, raramente consegue afirmar-se perante a hegemonia quase monocultural da FC anglo-saxónica. Isto não é um comentário xenófobo, apenas um resmungo de quem sabe que coisas interessantes se publicam no espaço europeu, mas não consegue ler graças às barreiras linguísticas e de divulgação. Até me safaria a ler em francês, espanhol ou italiano, mas com a baixa divulgação dos seus autores e temas dita que nem sei por onde começar. E nem vale a pena olhar para outras línguas europeias mais guturais.  Discute-se, e há que fazer vénias a quem faz. O mais importante desta antologia é o atrevimento de existir, uma parceria entre três pequenas editoras europeias: a britânica NewCon Press, a finlandesa Osuuskumma, e a portuguesa Divergência, que se distingue pelo crescimento sustentado e excelência no trabalho de promoção e edição da FC e Fantástico portugueses. Graças a esta parceria, nascida na Eurocon, leitores de três países podem ler ficção escrita por outros. São nove contos, três de cada nação, representativos do trabalho dos escritores que colaboram com estas editoras. Steampunk foi o tema de partida, e, pessoalmente, espero que se esta iniciativa se mantiver, que os temas se diversifiquem.

Comics Internacional



Il Dylan Dog di Tiziano Sclavi: Lassù Qualcuno Chi Chiama, Tiziano Sclavi,  Bruno Brindisi

É conhecido o gosto que Umberto Eco tinha pelo trabalho de Tiziano Sclavi em Dylan Dog. É muito citado pelos fãs e críticos o seu dito que tinha duas leituras que nunca o cansavam, a Bíblia e Dylan Dog. A admiração não seria necessariamente pelo personagem, o que o fascinava era a forma como Sclavi estruturava as suas histórias em episódios aparentemente desconexos, enquanto tecia uma complexa teia narrativa. Lassú Qualcuno Ci Chiama é a resposta de Scalvi a Eco. Uma homenagem ao pensador e semiólogo italiano, inclusivamente retratado como personagem nesta aventura do Old Boy. Humbert Coe, linguista cujo labor de vida é procurar indícios de uma possível lingua-mãe primordial, a base da qual terão derivado todas as línguas humanas, arregimentado para ajudar a decifrar uma possível mensagem alienígena, e atormentado por sonhos recorrentes da cacofonia da torre de Babel. Coe é o retrato caricatural de vénia a Eco. Como nas boas histórias de Sclavi (e esta é das mais encantadoras), o cruzamento de linhas narrativas é complexo, uma complexidade inesperada no que é um produto de cultura popular. Há muitas histórias dentro desta história, a tranquila obsessão de Coe, as dinâmicas de tensão entre forasteiros e nativos (que Sclavi explora com humor corrosivo), a vida de uma emigrante que acabará por se tornar a mais inusitada paixão de Dylan, as histórias dos habitantes da vila, as tradições galesas, as lendas locais, e a suposta mensagem alienígena, que se revelará ser um poema gaélico, que poderá ser totalmente falsa, um anacronismo, ou uma manifestação espiritual. Sclavi ainda consegue enfiar referências a ovnis, conspirações militares e tensões políticas. Lassú Qualcuno Ci Chiama é uma sorridente homenagem a Eco, e uma das mais encantadoras e divertidas histórias que Sclavi criou para Dylan Dog.


Le Storie: Sangue e Gelo, Tito Faraci,  Pasquale Frisenda

Sangue e Gelo pega na história da retirada francesa da rússia, com a invasão napoelónica derrotada pelo general inverno, para nos mergulhar numa narrativa onde a violência da guerra e a visceralidade das tradições míticas eslavas se cruzam num ambiente de puro horror. Um grupo de soldados a tentar fazer o seu caminho de regresso pela rússia gelada é atraído para o que parece ser uma salvação abnegada, mas acaba por se revelar uma armadilha. Enclausurados numa aldeia arruinada, acossados por criaturas de pesadelo, os soldados descobrem-se num inferno povoado pelos seres horríficos da mitologia eslava, antigos deuses poderosos que foram subsumidos como demónios com a cristianização dos povos russos. Uma armadilha da qual a morte será a única fuga possível, e que terá um final deliciosamente ambíguo. O toque lovecraftiano da narrativa é complementado por um excelente trabalho visual, num registo de cinzentos a transmitir o gelo profundo do inverno russo, quebrado pela violência avermelhada do horror arcaico.



Dylan Dog: A Saga de Johnny Freak, Mauro Marcheselli,  Tiziano Sclavi, Andrea Venturi, Giampiero Casertano

O terceiro volume da coleção Bonelli é um brinde para os fãs do Old Boy. Dylan Dog regressa ao público português, depois da edição de Mater Morbi, e é um regresso muito especial. É a primeira vez que em Portugal se editam histórias de Tiziano Sclavi, o seu criador e melhor argumentista da série (apesar de Roberto Recchioni e Paola Barbato terem aguentado muito bem o manto de excelente argumentistas de Dylan Dog). O volume colige duas aventuras do detetive dos pesadelos. Em Johnny Freak, Sclavi conta-nos uma história decididamente perturbadora, longe do registo sobrenatural mas bem dentro do incómodo. Apesar da sua forte conotação ao sobrenatural, as aventuras de Dylan Dog são suficientemente ambíguas para atravessar géneros, do policial ao fantástico, e até ficção científica. Nesta saga, o tom é decididamente grand guignol.


Descender, Vol. 1: Estrelas de Lata, Jeff Lemire,  Dustin Nguyen

A Ficção Científica é um género que vive muitas mortes anunciadas. Uma visão cíclica, vinda não do poder editorial (as novas edições de FC no mercado internacional não são às pazadas, são mais comparáveis a porta-contentores atafulhados em risco de rebentar) mas de uma certa ideia de estagnação e isolamento face ao mainstream da cultura popular. Algo que se alia à sensação que hoje vivemos em plena science fiction condition, que este género já não tem voz refrescante ou nada que nos desperte as ideias numa era de constante banalização de prodígios da ciência e tecnologia. A contrariar os prenúncios fatalistas, o cinema tem-nos legado excelentes visões de FC no grande ecrã, ou diretamente para os pequenos ecrãs fragmentados da diáspora digital (caso do recente Anihiliation, baseado no romance homónimo de Jeff Vandermeer, relegado para a Netflix por decisão de executivos culturalmente conservadores). A banda desenhada também não foi alheia a este movimento, especialmente graças à Image, que tem dado luz verde aos seus criadores para editarem séries de ficção científica pura. Há dois ou três anos atrás, grande parte dos novos títulos da editora eram pura ficção científica e especulativa. Um impulso que agora tem perdido alguma força, com o regresso progressivo dos géneros fantasia e crime. As temáticas editoriais são cíclicas, respondendo aos interesses dominantes do público.


Do Inferno, Alan Moore, Eddie Campbell

Numa Londres de sombras e nevoeiro, sob a luz bruxuleante dos candeeiros a gás, um misterioso criminoso comete uma horrenda série de assassínios que chocou a sociedade britânica. Os esventramentos de prostitutas no bairro degradado de Whitechapel estão ainda hoje por resolver, alimentando especulações, obras literárias e cinematográficas. Bem vindos ao inferno de From Hell.

Banda Desenhada Portuguesa


Apontamentos de Terror, Pepedelrey

Mais do que a visão clássica horror, o que está em evidência neste Apontamentos de Terror é a capacidade de arriscar formas inquietantes de narrativa gráfica. A cidade do Porto é palco de quatro apontamentos, capturados pelo lápis de Pepedelrey. Quatro momentos de arrepio, entre o sobrenatural clássico, criaturas mortíferas e a maldade que se oculta no coração humano. Neste livro, um dos mais clássicos nomes da BD contemporânea nacional vira-se para o terror enquanto género narrativo, sustentando um elevado nível de experimentalismo gráfico.


Dragomante: Fogo de Dragão, Filipe Faria, Manuel Morgado

Descobri-me algo surpreendido por ter dado conta que li, e gostei, de uma edição de fantasia épica. Visualmente deslumbrante, com uma história interessante, Dragomante é uma excelente proposta de banda desenhada portuguesa co-editada pela Comic Heart e G.Floy numa edição cartonada, de luxo. Um livro que não deixa os leitores indiferentes, mesmo que não se seja fã de fantasia épica.


Cicatriz, Sofia Neto

Com uma cicatriz que denota um passado violento, uma mulher tenta sobreviver por entre aqueles que considera selvagens, enquanto procura uma agente desaparecida. Quanto mais entra dentro do mundo daqueles que antagoniza, mais se apercebe que a realidade talvez não seja aquilo que a sua indotrinação lhe transmitiu. Cicatriz é um livro discreto, de pura ficção científica.

Não Ficção


AIQ: How People and Machines are Smarter Together, Nick Polson,  James Scott

AIQ não nos mergulha tão a fundo na IA que poderemos temer o afogamento. Mantém-se leve, acessível, e dá-nos uma visão surpreendente e profunda da evolução e impactos de uma tecnologia que já está a influenciar a forma como vivemos. É de notar que os autores depressa desmontam o mito da IA como uma consciência super-inteligente. São mais terra a terra, mostram-nos que os avanços nestas tecnologia acontecem na forma restrita. Quer sejam os algoritmos de predição de produtos com que interagimos nas lojas online (ou no Netflix), algoritmos de reconhecimento de imagem, produtos como o Alexa, que agrupam tecnologias de processamento de linguagem natural com algoritmos de pesquisa e de predição com base no perfil do utilizador, sistemas de navegação por gps, processamento de dados financeiros (na banca, seguros, ou no IMTT, que está a usar uma ferramenta de IA para processar multas rodoviárias). Não são seres artificiais inteligentes, são ferramentas poderosas em aplicações muito específicas. São inteligentes, de formas muito específicas. Comportamentos inteligentes não significam consciência, na natureza encontramos exemplos disso, exames de abelhas ou formigas apresentam comportamentos complexos e estigmérgicos.


New Dark Age: Technology and the End of the Future, James Bridle

James Bridle não é um conspiracy nut qualquer. Despertou as atenções com o longo projeto artístico The New Aesthetic, um tumblr que coligia as interações inesperadas potenciadas pela tecnologia, entre a forma como os robots vêem o mundo que os rodeia à influencia dos algoritmos do dia a dia das pessoas. O seu New Dark Age disseca de forma arrepiante a derrocada dos sonhos utopistas dos bons velhos tempos da sociedade digital, sem se atrever a dar-nos pistas de como podemos reverter o estado das coisas. O livro é, em essência, um catálogo catastrofista, uma crónica do esmagar do optimismo e do vergar do zeitgeist global ao que Bridle apelida de pensamento computacional: a adaptação do indivíduo e da sociedade às exigências opacas de algoritmos concebidos de forma pouco transparente, pelos vencedores das economias assimétricas do mundo digital.

Este livro, de leitura imparável, não nos deixa tranquilos. Bridle é um daqueles poucos comentadores contemporâneos capazes de ver ligações intrínsecas entre factos aparentemente sem ligação entre si, tal como Geoff Manaugh ou Yuval Harari, outros cuja leitura dos seus textos nos provoca e muda a forma de pensar. Bridle é imparável na forma como associa a regressão social e progresso tecnológico, apontando para um futuro deprimente. Uma dark age, de maravilhas tecnológicas e vastas quantidades de informação, de desagregação social e retrocesso político, controlado por interesses económicos e vigiado por agentes na sombra. No fundo, um retrato da distopia em que sentimos viver sempre que assistimos a um telejornal.


Mentes Digitais A Ciência Redefinindo a Humanidade, Arlindo Oliveira

Tendo em conta a visão cinzentista que se tem dos académicos portugueses, é um pouco estranho ver um livro de índole tão especulativa escrito pelo atual presidente do IST. E editado pelo IST. Não que Mentes Digitais seja especialmente arrojado, na categoria de livros futuristas e trans-humanistas, é até bastante dócil nas suas visões. Lê-se como um conjunto alargado de apontamentos para aulas ou apresentações, levados da síntese a textos mais elaborados, que nos levam num périplo que começa nos primórdios da eletrónica, com a descoberta das leis do eletromagnetismo, e termina com as descoberta contemporâneas nos domínios da genética, bio-ciências e neurociências. A lógica é visível, o estabelecer de uma linha de continuidade de progresso científico que nos legou o corrente vislumbre, cujas possibilidades começam já a aparecer, de um futuro humano para lá do biológico, misturando informática avançada (robótica e IA) com virtualidades e transcendência do corpo humano. É nos dois capítulos finais que o autor se deixa ir mais longe, falando-nos de IA conscientes, ou digitalização da mente, formas de vida totalmente artificiais.

O Pior Livro do Ano


Holocausto Lunar: a divisão dos infantários, Sofia Guilherme Lobo

A badana deste livro de FC portuguesa apresenta-nos aquela que, para mim, é a melhor biografia de um autor de li nos últimos tempos: "Filha natural de um padre doutorado em línguas mortas e viveu uma infância rigorosamente religiosa". Infelizmente, é também o pico de qualidade literária de Holocausto Lunar. Se se vai situar uma história na Lua, convém contextualizar o cenário, ou pelo menos arranhar uma descrição do que seriam estas futuras colónias lunares. Pelas descrições, as cidades lunares até poderiam ser um quarteirão urbano da Reboleira. O mesmo se aplica à tecnologia futura. A história é uma sucessão de peripécias desconexas contadas com a perspicácia de um adolescente revoltado com o mundo. A projeção de um ataque à religiosidade, levado ao absurdo, metáfora sublimativa dos movimentos anti-clericais, tem um peso excessivo no livro. Este é o tipo de livro que um pároco de aldeia isolada dos anos 50, daqueles que gosta de manter o seu rebanho controlado com divino punho de ferro, recomendaria como leitura.