terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Normal



Warren Ellis (2016). Normal. Nova Iorque: FSG Originals.

Para onde vão os futuristas convictos quando o seu cérebro se quebra devido à exposição prolongada à contemplação do futuro? Normal Head é um refúgio e sanatório onde são isolados os especialistas de especulação avançada que colidiram com o futuro acelerado. Algo que Ellis chama de abyss gaze, doença provocada por contemplar o abismo em tempo excessivo.

Acompanhamos um especialista em segurança e multidões que, depois de sofrer um colapso mental, é levado para as instalações de Normal para iniciar um processo de recuperação cuja boa conclusão não é garantida. Aí cruza-se com um grupo heterogéneo de especialistas com diversos graus de danos mentais. Entre uma urbanista apaixonada por recolha de dados com pendor para canibalismo, um analista financeiro que resume o seu trabalho a embebedar banqueiros e deixá-los falar, uma estudiosa de bio-sistemas que acredita que o seu bioma intestinal é sentiente, a um especialista em cenários terminais para a espécie humana que passou a acreditar que a humanidade deveria regressar a África e refugiar-se numa enorme fortaleza, são muitos os casos de especulação futurista terminal que fritaram neurónios. O mistério adensa-se com o desaparecimento misterioso de um paciente, aparentemente substituído por uma nuvem de insectos, que talvez nunca tenha sido sequer humano, mas um enxame de microdrones de espionagem com aparência de insectos e capacidade de, unidos, mimetizar a aparência humana.

Normal é Warren Ellis em estado puro, a deliciar-se com a transposição escatológica dos limites da especulação sobre tecnologia, futurismo e impactos sociais. Não esperem deste romance personagens profundas. A força de Ellis está no óbvio deleite com especulação de ideias, e as suas personagens, como em tantas outras obras do autor, são pouco mais do que arquétipos distorcidos, individualizados na sua estranheza.

Esta tendência de futurismo escatológico sempre foi a grande característica do melhor trabalho de Warren Ellis. Foi a base das séries Transmetropolitan, Planetary, Global Frequency ou o inacabado Doktor Sleepless. O autor não é estranho ao circuito de festivais e eventos académicos de especulação futurista, com presenças em muitos destes eventos, onde partilha a sua visão muito própria da bleeding edge da contemporaneidade ao futuro próximo. Alguns dos textos daí resultantes estão coligidos no interessante livro Cunning Plans.

Normal assinala uma tendência que tenho observado na obra de Ellis, uma progressiva transição de deslumbre com as possibilidades do futurismo para uma visão deprimida, de alguém que não deixa de acreditar e se intrigar com as possibilidades da bleeding edge, mas suspeita que o espectro optimista se desvaneceu, deixando-nos com a especulação sobre consequências negativas, catastróficas ou terminais. Algo que é visível nas suas obras mais recentes. Elektrograd enferruja o cromado luminoso do Gernsback Continuum, Trees reduz a humanidade à condição de insectos por parte de alienígenas invasores que se instalam no planeta sem sequer registarem a sua forma de vida inteligente dominante. Este romance curto é, de certa forma, uma variante de Injection, a série que correntemente escreve para a Image. Nesta, um grupo de futuristas combate as consequências de um vírus memético que inseriram na sociedade quando, anos antes, as suas projecções mostravam um declínio e desaceleração do progresso social e tecnológico. O vírus serviria para estimular a sociedade, mas as suas consequências são uma ameaça. Se em Injection os futuristas, apesar de danificados, funcionam em sociedade e lutam activamente, Normal mostra-os quebrados, contaminados pelas franjas radicais das suas ideias, incapazes de funcionar dentro do continuum das pessoas mental e socialmente sãs.

Ellis sabe do que está a falar. Grande parte da sua carreira, os seus melhores trabalhos, a vertente que mais apreço desperta entre os seus fãs, é passada a contemplar e analisar o abismo. Normal é a forma que tem de exorcizar estes fantasmas, em ficção especulativa pura, sem ser atrapalhada por humanização de personagens. Romance em ritmo de technothriller, com o obrigatório McGuffin, e um toque de sátira ao mundo dos futuristas, com o qual se tem intersectado nos últimos tempos.