sexta-feira, 4 de março de 2016

Dylan Dog Albo Gigante #02


Tiziano Sclavi, et al (1993). Dylan Dog Albo Gigante #02. Milão: Sergio Bonelli Editore S.p.A..

Vou-me repetir. Escrevo isto sempre que aprofundo um pouco esta personagem, mas o facto é que há dois Dylan Dogs: o escrito por Tiziano Sclavi, e o por todos os outros, mesmo tendo o dedinho de Sclavi nas ideias para argumento. A diferença está na complexidade das histórias. Nos argumentos de outros argumentistas, mesmo os mais bem conseguidos como Recchioni em Mater Morbi, são lineares e centrados num único aspecto narrativo, muitas vezes desenvolvido com muito enchimento e pouco interesse. Já os textos de Sclavi são desafiantes, cheios de diferentes nuances com diferentes camadas de leitura, brincando com as expectativas do leitor, alimentadas pela própria estrutura de narrativas que mudam para sentidos inesperados. Junte-se a isso a riqueza literária e constantes referências à literatura e cinematografia de horror, e este Dylan Dog é de facto apaixonante. Isso nota-se neste Albo Gigante, que republica três aventuras escritas por Sclavi e uma quarta que, apesar de também ter sido concebida por este, foi desenvolvida por outro argumentista. As diferenças notam-se logo.

L'inquilino del Terzo Piano: Uma aventura em que Sclavi se compraz em trocar sucessivamente as voltas ao leitor. Algo que é habitual no seu estilo narrativo. Inicia com o que parece ser uma história sobre um serial killer assombrado pelos seus demónios interiores, mas depressa se torna muito mais. Acompanhamos o senhor Kaminsky, inquilino de um estranho prédio cheio de ruídos e habitado por vizinhos de atitude infernal. Homem apagado e paranóico, envolve-se em estranhos e violentos assassínios. Passamos boa parte da história a tentar perceber o que é Kaminsky, até Sclavi o matar. Entra Dylan, atraído pelos mistérios do que parece ser uma casa de pesadelos, lugar assombrado e indutor de alucinações. Mas não será a casa o artefacto demoníaco. Os seus habitantes guardam um estranho segredo. São duplos, e sabem que quando um duplo encontra o seu original um deles deve morrer. Na casa, ela própria um espaço duplo, nexo de duas realidades, abrigam-se os duplos sobreviventes ao encontro com os seus originais. A história aqui mergulha num profundo psicadelismo, com Dylan a colidir consigo próprio sem saber que é o real Dylan Dog, e a casa como espaço de alucinação onde cada apartamento encerra em si diferentes realidades impossíveis. Sclavi tece neste fumetti uma variante surreal sobre o tema clássico dos Doppelgangers na literatura fantástica, onde o conto William Wilson de Poe é um dos símbolos maiores. A ilustração está a cargo de Giampiero Casertano, com um traço firme que oscila entre a caricatura e o grotesco, com pendor para ângulos de visão distorcidos que sublinham o carácter surreal desta aventura do Old Boy.

Taxi: Dylan é contactado por um taxista londrino que tem clientes peculiares. Aparentemente, este condutor tem como clientela fiel fantasmas que se fazem transportar para cemitérios. Um Dylan incrédulo aceita acompanhá-lo numa jornada, percebendo que de facto os clientes do taxista são fantasmagóricos. E talvez mais, talvez ele e o seu táxi também sejam fantasmas, sem que se apercebam de tal. Uma curta deliciosa, daquelas que deixa um sorriso nos lábios do leitor, ilustrada no traço competente de Bruno Brindisi.

Angoscia: Sclavi à solta, inspirando-se na Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen, com uma história de filmes de pesadelo que encerram filmes e que poderão não passar de filmes. Há um sentimento inquietante de realidades fluidas, e uma divertida aos maus filmes de terror gore. Oa história centra-se num filme maldito, que na sua estreia fez arder o cinema, edifício que se materializa sempre que por ele passa uma mulher que contém dentro de si o espírito de uma bruxa, morta aquando do incidente do filme, e que usa o poder do cinema para tentar renascer.

Margherite: Uma colaboração entre Sclavi e Carlo Ambrosini, numa história tocante. Dylan torna-se obcecado por uma florista que todos os dias parece ser a mesma mulher em idades diferentes. Ela também o vê da mesma forma, não como é mas como foi ou será. É um amor impossível, entre dois seres que entre si vivem um tempo desconexo.