quarta-feira, 2 de março de 2016

The King In Yellow

 

Robert Chambers (2005). The King In Yellow And Other Horror Stories. Mineola: Dover Publications.

A marca que esta obra originalmente publicada em 1895 deixou na literatura de terror foi recentemente reavivada pela primeira, e brilhante, temporada da série True Detective. Por detrás do policial procedimental com conspirações sobre o uso da religião para obter poder político dentro do cenário decadente e algo surreal do interior do Sul dos E.U.A., por entre os pântanos e os subúrbios, havia constantes referências a esta obra de Chambers. Despertou o interesse mediático neste livro obscuro que os conhecedores da obra de Lovecraft e da sua extensão nos Mythos de Cthulhu sabem como influente quer no escritor de Providence, quer em seguidores como Derleth, Bloch e Ashton-Smith.

Não esperem deste livro, que colige contos de Chambers, tortuosos e negros voos imaginários, decadentes e horripilantes. É uma obra muito desigual, que colige quer os contos de horror que dão a King In Yellow a sua fama, quer um outro conjunto de histórias sobre uma visão romântica da vida de artistas americanos a estudar em Paris, cujo único horror é a sua intensa banalidade e moralismo classicista. É uma sensação estranha, chegar a meio de um livro supostamente arrepiante e o tom mudar completamente para o romantismo cor de rosa.

As histórias de terror, cuja influência marca uma certa literatura fantástica, também não são portentos da literatura negra. Têm o seu interesse, algumas despertando uma boa sensação de leitura arrepiante. Pessoalmente, fiquei surpreendido com o futurismo distópico inerente a Repairer of Reputations e à fluidez do tempo de Demoiselle D'Ys. O notável nestes contos é explorarem bem a premissa de um livro proibido, indutor de demência em quem o lê, contendo saberes arcanos e descrições da mítica cidade de Carcosa, onde reina o nefasto Rei Amarelo. Livro mítico que quando muito nos é mostrado em vislumbres de fragmentos, espicaçadores de uma curiosidade que nunca será satisfeita. A influência sobre Lovecraft e o seu Necronomicon é óbvia. Chambers urde estas alusões em contos de progressivo mergulho na demência. Mas não passa daí. Se o seu estilo fosse mais como o de Clark Ashton-Smith, teríamos longas descrições do exotismo arrepiante da mirífica arquitectura de Carcosa, de preferência com as pedras por entre o nevoeiro, batidas pela luz mortiça do luar em noites soturnas:
"Along the shore the cloud waves break,/ The twin suns sink behind the lake,/ The shadows lengthen/In Carcosa". 
Elemento que Chambers foi buscar à ficção fantástica de Ambrose Bierce.

The Repairer of Reputations: Tem o seu quê de desconexão ler sobre os anos vinte do século XX na américa, imaginados como um futuro. Mas para Chambers esta seria uma visão de futuro, e não resisto a perguntar-me como em 2120 os contemporâneos vão sorrir ao ler as nossas visões futuristas desse ano. Neste conto futuro tem o seu quê de belle époque com alguns laivos totalitaristas. Nova Iorque é animada pelas bandas dos regimentos militares que a defendem, a imigração judaica é proibida, os afro-americanos são segregados para um país só seu, são inaugurados centros de eutanásia voluntária e a américa reforça a expansão colonial num mundo onde os impérios britânico, germânico e francês vão sendo erodidos pelos americanos e russos. Intrigante, esta visão tão despodurada no seu americanismo supremacista. Mas isto é apenas o pano de fundo de uma história de conspirações ocultas. Seguimos os passos de Castaigne, que de acordo com a genealogia do rei amarelo é o segundo em linha para o trono ancestral da américa na tradição oculta da aristocracia mistérica do rei amarelo. Conta com ajuda de um conspirador, homem capaz de saber os segredos de toda uma cidade, que lhe promete milhares de homens para levantar armas em insurreição. Mas primeiro Castaigne tem de eliminar o seu primo, esse sim o herdeiro tradicional mas que desconhece de todo a tradição revelada pelo livro proibido que enlouquece nações. Para resumir uma longa e não tão interessante quanto isso história digamos que acaba com Castaigne num manicómio. O retrato da convicção pura feita a partir de ilusões paranóicas de grandeza é soberbo. Fica no ar o fascínio misterioso pela Carcosa onde as estrelas negras reluzem no céu. São aqueles pormenores que ficam, como a sensação de terror atávico invocada por Lovecraft ou a Averoigne de Clark Ashton Smith. Já quanto ao texto em si fiquei estupefacto, apesar de compreender o contexto, com a xenofobia, supremacismo branco e fascínio totalitarista inerentes ao mundo ficcional do conto. Ou isso ou escapou-me alguma fina ironia.

The Mask: Neste conto decadente um triângulo amoroso resolve-se de forma inusitada. Dois amigos artistas, um pintor e um escultor, estão apaixonados pela mesma mulher. Esta prefere o escultor, mas isso não estraga a amizade e os três dão-se cordialmente. Mas o escultor tem um segredo. Descobriu uma fórmula secreta de um líquido capaz de transformar qualquer ser vivo em mármore, e vai experimentando em flores ou pequenos animais. Um dia, durante a doença da amada, um acidente acontece. Esta mergulha sem querer no líquido marmoreador e fica transformada numa estátua. O escultor suicida-se e deixa ao amigo pintor a casa e as esculturas em herança. Este, atormentado, parte numa longa viagem pelo oriente para esquecer a dor. Quando regressa, e reentra na casa das esculturas, apercebe-se que a fórmula não é eterna. Ao perder o efeito devolve as estátuas à vida, perfeitamente preservadas. E onde entra aqui o Rei Amarelo? Muito de passagem, como livro que o pintor pega para descansar a mente num momento doloroso. Uma coisa não tem a ver com a outra, porque é muito duvidoso que Chambers tivesse conhecimento de um obscuro autor português, mas há um curioso paralelismo de tom e ideias com Os Canibais de Álvaro do Carvalhal.

In The Court of the Dragon: Ler The King In Yellow é uma experiência transformativa, que altera de forma indelével quem se depara com o livro. Até as experiências mais puras, como apreciar sermões e música sacra, são deturpadas pelas visões da tenebrosa Carcosa.

The Yellow Sign: Um pintor, levemente apaixonado por uma dos seus modelos que está derretida com o artista, recebe desta um estranho amuleto amarelo. É a marca amarela, que conjugada com a leitura maldita do livro King in Yellow os irá mergulhar num pesadelo inesperado.

The Demoiselle D'Ys: Um conto de estrutura linear clássica, sobre um jovem americano que se perde numa remota zona pantanosa da Bretanha. Irá ser salvo por uma bela aristocrata e os seus servos, caçadores com falcões. Por entre os salões medievos do Castelo de Ys a paixão será inevitável, mas nestes pântanos bretões o espaço e o tempo comportam-se de maneiras imprevisíveis. Os medievalismos do castelo poderiam ser atribuídos ao isolamento, mas o passado e o futuro colidem naquela zona de lendas. O protagonista irá acordar sob as ruínas do castelo, aos pés do túmulo centenário de uma dama que morreu de amores por si. Conto linear, com uma boa concepção dos paradoxos temporais aplicados ao sobrenatural.

The Prophet's Paradise: Mais conjunto de vinhetas do que um conto coerente, distingue-se pela imagética grotesca dentro de um inesperado surrealismo onírico.

The Street Of The Four Winds: Numa mansarda de uma ruela obscura parisiense, um pintor com pouco amor ao convívio encontra amizade com um gato que lhe aparece na soleira da porta. Gato esse que contém numa coleira o mistério da sua origem. O pintor irá descobrir que a dona do felino também vive no seu prédio, mas morreu esquecida pelos olhares do mundo. Restará ao artista encontrar o seu cadáver, num andar soturno de uma obscura ruela de Paris.

The Street of the First Shell: Numa Paris sufocada por um cerco prussiano, um grupo de artistas americanos tenta sobreviver no meio da fome e da destruição provocada pelos constantes bombardeamentos.

The Street of Our Lady of the Fields: um jovem americano, aspirante a artista e muito inocente nas coisas do mundo, mergulha na vida boémia do Quartier Latin. Apaixona-se por uma jovem modelo, que vê nele o oposto total à vida dissoluta de moralidade duvidosa que sempre viveu.

Rue Barrée: Não uma rua, mas uma rapariga muito bela por quem os jovens artistas do Quartier Latin se fascinam, sem que ela lhes dê atenção. Um, mais inocente e afoito, tenta conquistá-la. Entre devaneios e assomos de romantismo, ficamos sem saber se realmente conquistará o coração da jovem, cujo verdadeiro nome nunca é revelado.