"Então é assim, Fortuna, relegas para a sombra os mais sábios, e o governo do mundo abandonas aos mais néscios".
Surpreende-me que não tenham ainda saído a público vozes que critiquem a estreia desta trilogia de Miguel Gomes em época eleitoral. Talvez por fazer parte daquele tipo de cinema português do qual se lê com pontinha de orgulho nacionalista a boa crítica saída no estrangeiro mas que não enche salas de cinema. O tipo de cinema que não chega às massas, passando debaixo do radar daqueles tipos engravatados e bem apessoados que estão nos meios de comunicação a comentar as actualidades, explicando-nos tudo muito bem explicadinho porque não temos a sabedoria necessária para entender a justeza e grandeza das decisões que nos afectam. É que este não é um filme cómodo e subserviente aos interesses das principais forças políticas. Muito pelo contrário.
Oscilando entre a fina ironia e o documentário puro, As Mil e Uma Noites Volume 1: O Inquieto assume à partida uma postura crítica destes anos de austeridade, troika, contracção económica, perda de direitos sociais e empobrecimento generalizado. Começa como documentário puro, levando-nos ao rescaldo do encerramento dos estaleiros de Viana do Castelo intercalado com as aventuras de um inventor que combate uma invasão de vespas asiáticas. Mas depressa se revela incapaz de enfrentar a realidade, dura, inquietante, e refugia-se numa fantasia que inspirando-se no feérico das mil e uma noites vai permitir olhar de frente para os dramas que nos dilaceram enquanto nação. Com as inúmeras possibilidades de vozes documentais que se consolidariam num padrão, resta a metáfora para nos contar a história real. Aquela que conhecemos da nossa experiência pessoal de viver num país-laboratório de técnicas de regressão social e económica camufladas
Não é um filme que nos deixe indiferentes. Sorrimos com a ironia ou a crítica em humor sem limites. Dá um certo gozo saber que o primeiro ministro português é retratado como um idiota incapaz e impotente (a caricatura inclui o pin com a bandeirinha à lapela), que as audiências dos festivais internacionais de cinema vão poder ver esse retrato. As mesmas audiências que vão ouvir os relatos dolorosos dos trabalhadores descartáveis e desempregados varridos pela sanha neoliberal. O fantástico surreal está ao serviço de uma fortíssima consciência cívica, através da qual os dramas do viver neste país austerizado são sublimados. A narrativa não é linear, sendo episódica e geograficamente dispersa.
De certa forma, este filme fez-me pensar o quanto parece uma inversão de O Princípio da Sabedoria de António de Macedo. Este também é episódico e fantasista (e delirante, delicioso, surreal e com uma estética espantosa), mas o carácter que mais sobressai é o seu optimismo. Filme de 1975, mostra que era possível sonhar, pensar, fazer e agir de forma livre. Sintoma da promessa de um país liberto do jugo da ditadura e ao qual o futuro parecia abrir-se. Quarenta anos depois, a primeira parte deste As Mil e Uma Noites mostram num 2015 a derrocada dessas utopia num país amargo e sem futuro. E não se augura que as restantes sejam mais risonhas. É uma chapada cultural na complacência com a nossa ruína, o retrato do que conhecemos e que contraria o discurso optimista de responsáveis políticos interessados em ofuscar a dura realidade em que nos mergulharam.