quarta-feira, 27 de maio de 2015

Dreaming 2074


Xavier Mauméjean (ed.) (2014). Dreaming 2074: An Utopia Created By French Luxury. Comité Colbert.

Uma antologia curiosa, que recupera a ficção científica como apontador de tendências em especulação informada e direccionada. Tem o seu quê de design fiction. Encomendada pelo Comité Colbert, um think tank que reúne as maiores empresas francesas da área dos produtos de luxo, revê a ideia de luxo à luz da ficção científica. Reunindo contos, peças musicais e ilustrações de autores franceses, centra-se num mundo pós-escassez com o problema da sobrecarga sobre o planeta resolvido com uma pandemia global. Tem um mundo ficcional partilhado, embora não seja algo aparente à primeira vista. Apenas em detalhes tecnológicos nos apercebemos que o universo ficcional tem mais pontos em comum do que ter o luxo como tema. É pervasivo o ponto de vista individualista, com forte integração da tecnologia no espaço íntimo do indivíduo. Ênfase no elitismo meritocrático de aparência benévola.

Antologia curiosa, mas que incomoda. Começa logo pelo tema, largamente removido da realidade da maioria. Estamos a falar do elogio dos píncaros rarefeitos do alto luxo, da celebração das sensações obtidas por ser detentor do inatingível. Mais preocupante ainda, resolve o óbrio problema das desigualdades de uma forma particularmente tétrica. Sabemos que uma utopia de perfeição luxuosa traz consigo a inevitável pergunta de saber o que acontece aos mais pobres. Neste mundo ficcional a coisa resolve-se com uma pandemia global. Sim, leram bem. Uma utopia futura de elegância e prosperidade constrói-se depois de se eliminar a maior parte das massas infectas de humanidade sem mérito. Algo muito incómodo de ler nestes tempos de manigâncias financeiras alastrantes, austeritarismos e meritocracias que se assumem como legitimadoras de democracias autocráticas. Afinal, esta especulação foi encomendada por casas de produtos de luxo. Estas conhecem bem a mentalidade dos seus clientes.

Lida como design fiction, a antologia tem os seus méritos. É uma utopia suave, elegante, misturando tecnologia com sensações únicas. Mas o modo de pensamento que a enquadra é fortemente incómodo. A antologia está disponível para leitura gratuita em vários formatos em Dreaming 2074.

Porphyrian Tree: No conto de Xavier Mauméjean a pergunta central é qual o maior dos luxos para aqueles que já têm tudo. A resposta está nas experiências, e o personagem principal deste conto é um dos melhores do mundo a criar experiências transformativas que melhoram a vida dos seus clientes, mostrando-lhes que apesar da sua riqueza há emoções. O seu maior desafio é uma recompensa, proposta pelas autoridades de saúde mundial, a uma artista que nos tempos mais tenebrosos de uma humanidade assolada por pandemias globais conseguiu dar esperança. Um conto que vale mais pela ambiência limpa e elegante de um futurismo luxuoso (essencialmente, o foco deste livro), com cidades lustrosas, elegância tecnológica e rápidas redes de transportes aéreos e ferroviários a transportar a meritocracia com todo o conforto por todo o globo.

Amber Queen: Vinho é o tema luxuoso de Olivier Paquet, que cruza a longa tradição vinhateira francesa com as exigências do mercado financeiro e a coligação entre intuição humana e inteligência artificial. A enóloga responsável pelas castas de uma casa vinhateira centenária apoia-se numa inteligência artificial simbiótica para perceber as potencialidades do vinho que produz. Ao reformar-se, decide legar a intuição artificialmente aumentada a todos os que beberem o vinho produzido pela vinhateira. Um conto que aproveita o tema do luxo para apontar um caminho curioso de integração homem/inteligência artificial em que o objectivo é a simbiose, com as valências humanas e digitais a socorrerem-se uma da outra.

Facets: O modo como vestimos diz muito sobre a nossa personalidade e emoções do momento. Neste conto de Samantha Bailly, a premissa recai sobre um tecido cujas cores e padrões se metamorfoseiam em tempo real de acordo com a biologia das emoções de quem os veste. A sua criadora junta moda e neurociência, depressa conquistando os escalões mais rarefeitos do mundo da moda de luxo. Mas sente que lhe falta algo, uma componente artística, e ao juntar forças com uma casa de alta costura tradicional atinge, finalmente, a simbiose entre tecnologia e perfeição artística com um vestido que mistura a luxúria dos materiais classicos com as possibilidades da biotecnologia.

Diamond Anniversary: Jean-Claude Dunyach, um dos veteranos da FC francesa, dá-nos uma jóia do conto. Ironia intencional. Nela, o herdeiro de uma casa de alta joalharia descobre que o segredo ancestral da família está ligado ao seu maior sonho, o ser astronauta. Um curioso conto sobre a luxúria das pedras preciosas e a possibilidade de minerar asteróides para extrair pedras raras.

A Corner of Her Mind: O conto de Anne Fakhouri mistura intriga empresarial com meios tecnológicos que permitem ler pensamentos, na busca de uma casa de peles de luxo pela manutenção da superioridade tecnológica nos seus produtos.

The Chimeras’ Gift: Há um toque demasiado óbvio de Cinderella neste conto de Joëlle Wintrebert que encerra a antologia. Centra-se numa bióloga ao serviço de uma casa de peles de luxo que vende um produto único, peles de quimeras, criaturas saídas do laboratório de uma bio-engenheira genial que misturando genes de focas e leões marinho cria seres capazes de mudar de pele, permitindo peças únicas sem matar animais. A relação entre esta e a gerência da casa degrada-se e a jovem bióloga é obrigada a invadir o laboratório da bio-engenheira. Tudo se resolve quando a filha autista da bióloga se mostra capaz de interagir com as quimeras e o filho da presidente da empresa intervém de forma romântica.

Para encerrar o livro Alan Rey cria um glossário de neologismos futuristas ligados ao luxo e às sensações que desperta.