quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Visões


Space Station 76: Fiquei surpreendido quando percebi que este filme não chegaria ao circuito comercial. A ideia de uma comédia com as tropes e estética da FC clássica, do 2001 às séries televisivas que marcaram muitas infâncias, parecia algo irresistível. Depois de ver o filme, percebi porque é que foi condenado ao straight to DVD. O filme é sofrível e falha em quase toda a linha. Safa-se a estética, que replica na perfeição o futurismo dos anos 70. É suposto ser uma comédia, mas as piadas não conseguem sequer despertar um sorriso. Os actores agem de forma mais estática do que os elementos decorativos e as suas interpretações são feita naquele tom monocórdico do vamos lá despachar esta coisa que até paga as contas mas tenho mais que fazer. Esperava uma comédia com fortes vénias a toda uma iconografia cinematográfica e televisiva, saiu uma história medíocre. Nem Keir Dullea no papel de comandante obviamente gay que se finge machão perante uma tripulação que sabe perfeitamente quais as suas inclinações consegue convencer, e é de longe o único actor que se esforça minimamente neste filme. Resta a iconografia, perfeita na referenciação à estética futurista dos anos 60 e 70, tão confortável a ecoar 2001 como Buck Rogers in the XXVst Century, recuperando a alta tecnologia obsoleta dos primeiros robots ou das nintento power glove. Tudo o resto falha, e o filme é um suplício de ver até ao fim.


The Book of Life: É pena que um filme tão deslumbrante como este passe boa parte do tempo a agachar-se em busca de legitimação por parte do público americano. No seu melhor é uma homenagem vibrante ao sincretismo da cultura mexicana, misturando as raízes da mitologia azteca com as tradições hispânicas. Mariachis, touradas e todo o submundo alucinante do Dia de los Muertos colidem numa história infantil visualmente espantosa. Toda a iconografia fascinante e colorida da tradição mexicana explode no ecrã. A cor é exuberante, o barroquismo visual espantoso, e a história dá-nos a conhecer La Muerte e Xibalba, com os seus paraísos para os recordados e o inferno do oblívio para os esquecidos. Sendo um filme infantil a narrativa é simples, apesar de ter uns desvios interessantes para a capacitação feminina numa sociedade vista como machista. E, visualmente, é deslumbrante. Já escrevi isto, não escrevi?

Infelizmente todo este brilhantismo é apagado pela submissão do filme aos padrões culturais da cultura pop comercial americana. Por exemplo, não se percebe porque é que sempre que os personagens cantam são variantes de músicas pop anglo-americanas. Não faz nenhum sentido um torero que se recusa a matar toiros dedilhar na arena uma canção triste ouvida apenas pela mulher que ama, e essa canção ser o Creep dos Radiohead. Este sintoma é exacerbado pelas intermissões que estruturam o filme, contado como uma história destinada a interessar na cultura mexicana um bando de crianças mal-comportadas em visita de estudo. A mensagem que passa do filme é que sim, há outras culturas fascinantes no mundo mas só são válidas se agradarem a um bando de putos americanos ranhosos e mimados. Esta condescendência dilui aquilo que poderia ser um filme infantil excepcional.


Jupiter Ascending: Este filme foi a experiência cinematográfica mais desapontadora que tive nos últimos tempos. A estética e os autores prometiam mais, mas o que vi foi uma história patética do tipo Cinderella no espaço com lobisomens musculados, muitas perseguições e explosões. Para fãs conhecedores da riqueza da FC este filme não só é mau, como é ofensivo. Pretende ser uma space opera barroca, e visualmente assume-se nesta tradição tão bem explorada a partir dos anos 70 com Niven e Delany. O problema é que toda essa estética é posta ao serviço de uma fantasia urbana erotico-romântica não consumada com uma menina humilde que limpa casas de banho e afinal é uma princesa de uma vasta civilização galáctica, mergulhada numa intriga palaciana pela herança de uma familia milenar. Uma desculpa não muito boa para perseguições infindas. O conceito de Terra não como berço da humanidade mas como um pequeno elemento de vastos impérios feudais é interessante, e a ideia de semear planetas com vida humana para eventualmente a colher para processar os humanos na fabricação de uma substância rejuvenescedora destinada a prolongar indefinidamente a vida de uma elite afluente poderia ser um bom comentário em modo de FC à distribuição desigual de riqueza e à hegemonia do 1%, mas depois do choque inicial perde-se em intrigas bizantinas. Todo o filme é absurdo, mas o final é especialmente cretino. Porque quando se é uma princesa galáctica, dona de um planeta, o melhor destino que se pode escolher é voltar a ser lavadora de sanitas com fugas regulares para os braços musculados do seu amante alienígena com genes de lobo e asas de anjo negro.

Restaria, talvez, o lado visual para salvar algo neste filme. O barroquismo visual impera, os cenários e VFX são deslumbrantes, mas acabam por se render a uma monotonia estética muito própria do deslumbre com as capacidades do 3D. Onde o filme muda um pouco, e se aproxima do interessante, é ao chegar ao verdadeiro berço da humanidade, um planeta sobrepovoado onde a estética se aproxima do clockpunk retro. É nesse momento a única cena verdadeiramente interessante de todo o filme. O planeta é todo ele uma vasta cidade, referência óbvia ao Trantor asimoviano (ou ao Coruscant da Guerra nas Estrelas, para quem nunca tenha lido a série Fundação de Asimov). É rodeado por uma outra vasta cidade que o orbita num anel de möbius, referência ao Ringworld de Niven. E por entre os detritos, naves espaciais e estações em órbita num espaço super congestionado há um rápido vislumbre de um toro de Von Braun. Não um qualquer, mas o mesmo que Kubrick usou em 2001. Graças a isso, durante uma fracção de segundo pude gostar do filme. Não é a única piscadela de olho estética do filme. Apontaria a vénia a Frank Gehry na sequência inicial, à estética de Gilliam em Brazil no berço humano, e o estranho fascínio com catedrais dos realizadores. Adoraria que tivesse correspondido às expectativas de uma space opera divertida e visualmente deslumbrante, mas um argumento patético e uma estética excessiva que se torna monótona descarrilam numa abordagem estupidificante que se socorre da FC para vender pipocas.