terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Sustos às Sextas (II)


(Imagem descaradamente rapinada da página do facebook do Sustos às Sextas.)

Ouvir uma história de arrepiar na noite profunda, no salão escurecido de um palacete iluminado por luz de velas e o crepitar da lareira que se vai desvanecendo. Foi um momento clássico, que remete para o mais tradicional das ficções arrepiantes. Só podia vir do classicista erudito que é António Monteiro,  representante contemporânea daquele anglicismo eduardiano do horror fantasmagórico das veredas cobertas de névoa que rodeiam mansões decrépitas. Parece crítica, mas não é. O terror não se esgota no gore ou bodyhorror, na angustia psicológica ou monstros lovecraftianos. Também é bom regressar às raízes do terror com momentos de erudição clássica. Tal como a FC, o horror é um género que não esquece a sua memória e continuidade evolutiva. E eu, apesar de ter os pés firmemente assentes no admirável mundo novo digital com um braço encostado às naves espaciais, não deixo de ter um fraquinho pelo clássico conto das casas a ranger na noite vitoriana. As histórias de Carnacki The Ghost Finder e os contos de fantasmas andam na fila de leituras do e-reader (bravo, Projecto Gutenberg).

E aposto que aquele momento em que o conto chega ao pico do terror e a lareira crepita, quebrando o silêncio e a voz, tão cedo não será esquecido pelos presentes.

Finalizou à luz de velas, mas o grosso desta sessão partiu de uma longa conversa de António Monteiro com Rodrigo Guedes de Carvalho e Tiago Guedes, argumentista e um dos realizadores de uma das raridades da cinematografia portuguesa, o filme de terror Coisa Ruim. Rodrigo Guedes de Carvalho é um comunicador nato e numa interessante e divertida conversa falou-nos sobre um filme imensamente bem escrito mas mal realizado (uma clara private joke entre ele e os realizadores, que teve piada da primeira vez que foi preferida mas nem tanto das restantes), das dificuldades de contar histórias em cinema (curiosamente, vim a reflectir sobre coisas que Guedes de Carvalho observou no contexto de formação sobre Plano Nacional de Cinema onde estive no dia seguite a este Sustos), sobre inspirações e todo o processo de filmar uma história onde o sobrenatural é preponderante. Ainda não vi este filme. Na altura em que saiu o factor de conotação com uma celebridade nacional levou-me a desconsiderar o filme como uma brincadeira de alguém com nome estabelecido noutro género que vem ao recreio do terror brincar um bocadinho. Mas do que vi e ouvi nesta sessão dos Sustos fiquei com a curiosidade desperta.

Curiosamente, reparei numa estranha tentativa de descolar o filme do rótulo "terrror", com os entrevistados a cair na tentação de afirmar que não, aquilo no fundo não é um filme de terror, é uma história sobre um casal em desagregação que ao ir viver para o campo descobre que perdeu a chama do amor, e os efeitos do processo de separação sobre o filho adolescente. Pois. Faz lembrar aqueles autores ou críticos que o David Langford tanto gosta de observar que ficam muito felizes e contentes quando a sua obra deixa de ser conotada com essa coisa horrenda que é a ficção de género. Coisas que quando muito têm uns pózinhos de fantástico/terror/ficção científica para apimentar, mas no fundo são obras perfeitamente dentro dos cânones do mainstream. Fazer observações destas, mesmo en passant, no quadro de um encontro de fãs dos géneros do fantástico nas artes, soa a algo estranho. Mas percebe-se. Essas coisas da ficção científica e do terror são coisas para maluquinhos, e o ICA não desperdiça o dinheiro dos contribuintes com coisas para maluquinhos. Os financiamentos vão só para obras de arte comprovadas. Como se nota, pela história de António de Macedo, realizador que por cá fique conotado com géneros fora do cânone não só pode esperar não voltar a ter apoios para filmar como assistir ao esquecimento da sua obra, pese embora esforços pontuais de fãs que tentam lutar contra este estado das coisas.

Esta segunda edição dos Sustos às Sextas começou com a interpretação de duas canções do musical Phantom of the Opera. Se os dotes da pianista são de excelência, eu pessoalmente sou algo imune ao género musical em geral e em particular ao génio de Andrew Lloyd Weber. Mas ouvir musicais que sempre me soaram algo banais faz parte do ambiente de boa parte do público do Sustos às Sextas. Questão de gostos, que não deixam de ser legítimos. Afinal, fãs de culturas de género compreendem melhor que ninguém a sensação terrível de ver as nossas paixões desconsideradas por questões de gosto. Posto isto, a perspectiva de ouvir mais excertos do Fantasma da Opera não me anima muito. Posso sempre chegar atrasado. Ou esperar novo repertório. Não se exige a Fantástica de Berlioz (mas olhem que as bruxas à meia noite condiziriam muito bem com o ambiente do palácio dos Aciprestes), mas certamente que o teatro musical de terror não se esgota em Lloyd Weber.

António Monteiro é o anfitrião de sempre, e o responsável por manter um espírito algo diferente neste género de iniciativas. Tem o seu quê de formal e proto-académico. Em essência é clássico, old school. E porque não o poderia ou deveria ser? A diversidade é essencial à cultura, e o Sustos às Sextas desde cedo me pareceu afirmar-se como evento cultural ambicioso. Notei que a sala tinha mais cadeiras, e todas preenchidas. Esperemos que a tendência se mantenha.

No dia 13 de Março lá estarei novamente. Quer a descobrir ou redescobrir o lado clássico do horror, quer a reencontrar amigos e pessoas que admiro entre os fãs do género. O espírito de tertúlias também vive disso, de ponto de encontro daqueles que no dia a dia raramente se cruzam, excepto em espaços virtuais, e que partilham o gosto por géneros do imaginário. Espero que menos exausto do que nesta sessão, vítima como fui da sublime conjugação de reuniões de conselho de turma, aulas, leccionar sessões de formação e dominar a impressora 3D. Se disser que nestas duas semanas tenho fechado a escola ao início da noite não estou a exagerar. Entre o horror dos demónios e das criaturas que arranham no escuro e o holocausto das reuniões, digamos que mais valem as garras do demo.