quinta-feira, 3 de agosto de 2006

O Bárbaro



Robert E. Howard, Conan - A Rainha Da Costa Negra, Saída de Emergência, 2005

Saída de Emergência | Conan A Rainha da Costa Negra
Wikipédia | Robert E. Howard
Wikipedia | Conan The Barbarian
Épica | Conan, o bárbaro

Confesso que foi com alguma relutância que peguei nesta edição de contos de Robert E. Howard editada pela Saída de Emergência. Trata-se de um livro de contos de Conan, o bárbaro, personagem batida e estereotipada com múltiplas encarnações na cultura popular. Falar de Conan é relembrar institivamente toneladas de pranchas de banda desenhada onde o bárbaro vive e revive violentas e repetitivas aventuras numa terra antediluviana; e um pouco mais assustador, é relembrar um jovem Arnold Schwarznegger a correr de tanga e espada em punho enquanto combate serpentes gigantes com voz de Darth Vader (James Earl Jones, que deu voz a Vader, desempenhou no malfadado filme o papel de feiticeiro malvado que Conan tem de aniquilar). Ou seja, a boa recordação de Conan são as ilustrações de Barry Windsor-Smith numa das fases dos comics, com um traço pré-rafaelita que transformava as vinhetas em obras fascinantes. Tudo o resto não parece passar de fantasias menores habitadas por exóticas mulheres semi-desnudas, feiticeiros tenebrosos, deuses desdenhosos e bárbaros fortes e musculados, descritos com uma precisão homo-erótica.

Não se pode negar que Conan é uma personagem que já faz parte do inconsciente colectivo da cultura de entretenimento. Faz por isso todo o sentido ler, ou reler, os textos originais que originaram o culto da personagem. Para mais, a minha leitura anterior de Salomão Kane revelou uma obra mais complexa, com valor, do que à partida suspeitaria num clássico escritor pulp como Robert E. Howard. Ler os contos originais de Conan é um mergulho na imaginação exótica do escritor. Conan é pura ficção escapista dos saudosos primórdios da generalização deste tipo de ficção, e lê-se com o prazer de quem saboreia um bom petisco. Pode não encher o estômago, como Guerra e Paz ou qualquer outro dos grandes clássicos, mas é uma leitura de profundidades insuspeitas que ultrapassa a linearidade e a superficialidade do que habitualmente se publicava (e publica) nos pulps - uma característica que Robert E. Howard tem em comum com H. P. Lovecraft.

As histórias de Conan contam-nos as aventuras de um bárbaro possante e honesto nas paisagens exóticas da era Hiboriana, uma era há muito desaparecida que se estendeu desde o afundamento da Atlântida até aos primórdios da história humana - pelo menos de acordo com a mitografia esparsamente estabelecida pelo autor. Conan é um cimério, homem da raça mais endurecida e selvagem do norte, que vive aventuras empolgantes nas exóticas terras e cidades da era hiboriana, nas suas diversas vocações de ladrão, mercenário, aventureiro, líder militar, pirata e rei. Possante e de espada em punho, Conan impõe a sua vontade aos espíritos distorcidos de reis corruptos, sacerdotes tenebrosos e divindades malévolas. Apesar de selvagem e amoral, Conan acaba sempre por estar do lado do bem, embora não seja uma bondade tranquila - antes, é mais a bondade no fio de uma pesada espada empunhada por um braço musculado. Terras fantásticas, cidades exóticas, mulheres sensuais e feiticeiros malvados - é este o mundo simplista que habita o imaginário das histórias de Conan.

Simplista, embora pouco simples. Apesar de serem contos de moralidade óbvia - o bem contra o mal, e o bem vence sempre, apesar das vicissitudes do mal, há pormenores que escapam ao simplismo. Provávelmente é por isto que Conan continua a ser lido e a chamar a atenção, quando outras personagens semelhantes com a mesma tipologia caíram no esquecimento. Um dos pormenores que chama a atenção prende-se com a selvagaria de Conan - Conan é um selvagem, e age como tal. O bem e o mal, na personagem, é o bem e o mal de um mundo naturalmente violento - como um lobo que é obrigado a devorar um coelho fofo para sobreviver. Parece mal, mas não o é. São simplesmente as leis implacáveis da natureza em acção, no eterno ciclo de vida e morte. Por outro lado, a verdadeira maldade está presente no mundo civilizado. Se Conan é selvagem, e por isso de moralidade duvidosa, os seus contactos com a civilização revelam um mundo onde a maldade é ocultada sob a capa de palavras melífulas e de luxos ostensiosos. O mundo natural pode ser amoral, mas o mundo civilizado é imoral, parece ser uma das mensagens de Robert E. Howard. Com a civilização vem a sede de poder e a ambição desmedida.

Outro pormenor curioso no mundo imaginário de Conan prende-se com os deuses da era hiboriana. Os deuses gerados pela imaginação de Howard não são deuses benévolos, que ajudam a humanidade. Crom, o deus a que Conan dirige as suas preces, é uma divindade indiferente que se interferir na vida dos seus crentes é para lhes trazer a destruição. E os outros deuses pouco melhor são. São antes como demónios, que brincam com as vidas humanas e escondem trevas profundas para lá dos seus aspectos assustadores. O clero que serve estes deuses é um clero cego e louco, sedento de poder e ambição, que não hesita em usar os poderes dos seus deuses para expandir o seu domínio temporal, pilhando e escravizando a seu bel-prazer. Conhecendo mal a biografia e o pensamento de Robert E. Howard, não me posso atrever a dizer que isto revela desdém e desconfiança pelo conceito de religião.

O aspecto de uma moral primitiva, selvagem mas justa, que se impõe às moralidades dúbias e às ambições veladas de uma civilização que corrompe já era legível nas aventuras de Salomão Kane. Conan - A Rainha da Costa Negra é um saudável e refrescante mergulho na fonte das histórias de uma personagem batida, que revela alguns toques insuspeitos que ultrapassam os estreitos limites do género e revelam porque é que a personagem se tornou parte integrante do imaginário colectivo.