quinta-feira, 27 de abril de 2006
Tuvalu
IMDB | Tuvalu (1999)
Kinoeye | Tuvalu
World Cinema | Tuvalu
Tuvalu
Uma das melhores sensações culturais que podemos ter é ser surpreendidos por algo de inesperado. Quem busca a boa literatura, a boa música ou o bom cinema sabe bem como é bom sentir aquele frisson dentro de nós quando deparamos com algo de belo, algo de novo e excitante. Tuvalu é uma dessas obras, uma obra altamente premiada, um pouco obscura, e simplesmente apaixonante.
nadando por entre os peixes
Tuvalu é um filme sonhador e feérico, que nos transporta a um delirante mundo de fantasia decadente. Numa cidade europeia em ruínas, Anton vive a sua vida sonhando com o mar e tratando da piscina onde o seu pai, apesar de cego, é salva-vidas. A piscina é um mundo decadente de azulejos a cair, paredes onde a tinta se descola em flocos e telhados cheios de buracos por onde cai a chuva. A economia está má e paisagem é apocalíptica, e a piscina só funciona para que o pai de Anton se sinta vivo. O som dos clientes da piscina é dado por uma velha gravação, que engana o pai de Anton, que na sua cegueira crê a piscina de àguas paradas cheia de crianças a brincar dentro da àgua morna. Gregor, o irmão de Anton, é um capitalista que pretende demolir a piscina para construir um grande bairro de arranha-céus futuristas. Para isso, suborna um inspector de sanidade para fechar a piscina e obrigar Anton a vender o decrépito edifício a Gregor. A chegada de Eva e do seu pai, um marinheiro dono de um barco semi-afundado, vai desestabilizar Anton, que pela primeira vez na vida se apaixona. Mas as coisas não correm muito bem; Anton é ingénuo, e as constantes traições de Gregor fazem com que Eva pense que Anton é o culpado pela morte do seu pai. Eva tenta recuperar o barco do pai, mas para isso precisa de uma peça de uma máquina rara, da qual só existe outro exemplar na caldeira da piscina. Apesar de todas as peripécias, tudo acaba por correr bem; e Anton e Eva reúnem-se no sonho de partir para Tuvalu, um destino sonhado, um mundo cheio de promessa longe da decrépia terra onde vivem.
Tuvalu insere-se na mesma estética bizarra e quase pós-apocalíptica de filmes como o Delicatessen ou Brazil. O estilismo cenográfico, um estilismo decadente e apurado, está sempre presente em todas as memoráveis cenas de Tuvalu. E algumas das cenas deste filme fabuloso são, simplesmente... fabulosas. A cena em que Eva nada à noite na piscina vazia, nadando com o seu peixinho de estimação, é impressionatemente onírica, com o corpo da mulher intersectado pelo peixe num lusco-fusco azulado. Outra cena memorável é a do funeral do pai de Anton, numa procissão fúnebre em que o féretro com o cadáver em exposição navega pela piscina, numa perfeita metáfora de transição e rumo a uma nova existência. Tuvalu funciona como uma intersecção das calmas bizarrias de Jeunet e Caro (Delicatessen mas também O Fabuloso Destino de Amélie), que se distinguem tanto pela mise-en-scéne como pelos argumentos, e os delírios enlouquecidos de Emir Kusturica.
triunfo mecânico
Tuvalu é mais do que um exercício estilístico de argumento onírico e cenários atraentes. Tuvalu é um filme mudo. Leram bem. Um filme mudo. Dizer que é mudo não é ser rigoroso; o filme tem uma banda sonora fascinante. Mas os actores levam ao limite as suas capacidade artísticas, e representam apenas através da expressão corporal. Só quando é mesmo imprescindível é que falam, e quando o fazem, utilizam uma espécie de língua internacional que reúne palavras de muitas línguas. A verdade é que poucos sabem russo, mas quase todos sabem o que quer dizer dazvidanya ou nyet; o inglês é mais corriqueiro, e todos sabem o que quer dizer no e end; fin e amour explicam-se a si próprias; ambulanz; technologie; perfect. Alemão? Holandês? Búlgaro? As poucas palavras constituem um esperanto funcional, uma nova língua construída nas ruínas das conflituosas línguas europeias.
A própria história da génese de Tuvalu é tão interessante como o filme. Veit Helmer, o realizador, teve imensas dificuldades em convencer os produtores de cinema em investirem num filme mudo. Deveria, talvez, ter vindo até Portugal, onde o ICAM financiou o Branca de Neve de João César Monteiro, filme conhecido por ser um exercício de estilo de duas horas de diálogos sobre um ecrã negro. Helemr lançou-se numa odisseia verdadeiramente intercontinental em busca de cenários e técnicos acessíveis, encontrando em Sófia, na Bulgária, um verdadeiro paraíso cinematográfico de cineastas e técnicos experientes, sem esquecer cenários apropriadamente decrépitos, a condizer com o previsto no guião. Liberto de constrangimentos linguísticos, Helmer recrutou um grupo verdadeiramente internacional de actores, onde pontuam actores alemães, americanos, búlgaros, russos e franceses.
Tuvalu merece bem o estatuto de filme de culto. Visualmente perfeito, feérico e imaginativo, Tuvalu é um filme realizado por sonhadores, destinado a sonhadores.