terça-feira, 18 de abril de 2006
As Loucuras de Brooklyn
Paul Auster, As Loucuras de Brooklyn, Edições ASA, 2006
Edições ASA | As Loucuras de Brooklyn
Guardian | The Brooklyn Follies
Village Voice | The Brooklyn Follies
Nos anos noventa, graças a canções leves e dançáveis como Losing my religion ou Shiny Happy People, a banda REM ultrapassou o estatuto de banda obscura e independente e foi catapultada para as luzes da ribalta. Curioso sobre a banda, fui descobrir os discos que a banda tinha editado antes dos seus grandes sucessos, e descobri uma obra coerente de canções pop interessantíssimas. À partida, isto não tem nada a ver com o último livro de Paul Auster, recentemente editado em portugal, mas tenham paciência. Um dos melhores albuns dos REM pré-estrelato chamava-se Life's Rich Pageant, o que pode ser traduzido como O Maravilhoso Desfile da Vida. O que é que isto tem a ver com Auster? É que à medida que ia lendo, digo, que ia devorando as páginas de As Loucuras de Brooklyn, só me ocorriam estas palavras. Life's Rich Pageant. O maravilhoso desfile das curiosas personagens, belas, irritantes, obcecadas, abnegadas, alienadas, mas sempre interessantes, que muitas vezes povoam o nosso dia a dia. Embora, embrenhados como estamos nas nossas rotinas, raramente damos por elas. É esse o sentimento por detrás de filmes como o Roma ou o Amarcord de Fellini, ou por detrás de rituais tão em desuso como uma ida à velha barbearia da vila, onde os velhos costumes ainda resistem.
Em As Loucuras de Brooklyn, seguimos o renascimento de Nathan Glass, ou Nathan, O Tolo. Sentindo-se no fim da sua vida, divorciado, zangado com a filha, exausto depois de uma vida a trabalhar em seguros e descrente na remissão do cancro que lhe correu os pulmões, Nathan decide regressar às suas origens, ao bairro Nova-iorquino de Brooklyn, com o fim expresso de morrer. A ideia de Nathan não é suicidar-se, mas sim ir lentamente definhando por entre as ruas multiculturais do bairro, um bairro único na cidade. No entanto, tudo lhe corre precisamente ao contrário do que esperava. Quanto mais se embrenha na vida do bairro, mais oportunidades são dadas a Nathan. Reencontra um sobrinho, um jovem cujo futuro académico brilhante foi cortado pelo seu desencanto, e o seu patrão, um livreiro homossexual muito dado a trafulhices de falsificação de obras de arte. Envolve-se na vida de habitantes do bairro, ao entrar em contacto com a mulher que é o amor platónico do seu sobrinho - e depressa se enrola com a mãe desta. Retoma o contacto com a sua filha e com familiares há muito distantes. Começa a acreditar numa simpática fantasia utópica, o Hotel Existência, e ao tentar fazer com que a utopia se torne realidade num hotel do Vermont apenas consegue que o sobrinho arranje mulher. Tem um confronto violento com o marido da sua sobrinha, um profundo fanático religioso, um confronto que simboliza a guerra de ideias entre a américa intelectual e liberal e a américa fundamentalista, de ideais cerrados. Tudo isto se passa nos meses da eleição de Bush para a presidência, e Nathan também descreve, desconsolado, como assistiu às cáfilas de apoiantes de Bush a levarem a cabo o que para todos os efeitos constituiu um golpe de estado. Mas a vida continua. Brooklyn não é a américa má, a américa dos ideiais idióticos e dos comportamentos restringidos. Brooklyn é o melting-pot, o bairro onde se cruzam e coexistem todas as raças e todas as nacionalidades, onde se ouvem todas as línguas. O toque final, no entanto, remete-nos de regresso a uma triste realidade: o romance termina poucas horas antes do embate das aeronaves contra as torres do World Trade Center, no dia 11 de setembro.
Na imaginação de Auster, Brooklyn parece surgir como um local mágico, onde todos coexistem em paz, aceitando-se mutuamente.As Loucuras de Brooklyn é, por isto, um romance optimista, muito leve, o que não é habitual na prosa de Auster, conhecido pelos seus densos e algo esotéricos romances pós-modernos. Auster é geralmente mais trágico, mais impiedoso com as suas personagens. Pensem nas tortuosas Histórias de Nova Yorque, no sádico Mister Vertigo ou no deprimente Timbuktu. Nesses livros, o destino, inexorável e cravejado de acasos, leva as personagens à dissolução entre a paisagem urbana. O ponto em comum que As Loucuras de Brooklyn têm com as anteriores obras de Auster está na profunda crença do autor no poder do acaso. A Nathan, nada lhe corre como esperado. Tudo o que planeia não se concretiza. Mas tudo o que lhe acontece depende profundamente do acaso, um acaso que o leva do definhar à redenção. Não é por acaso (foi intencional) que Auster é autor de A Música do Acaso.
As Loucuras de Brooklyn não são um dos livros mais profundos de Auster. O optimismo, o amor pelas pequenas coisas da vida que repassam em cada página não são o habitual de Auster. Mas hoje, mais do que nunca, é importante pensar numa mensagem de optimismo e confiança no futuro, de confiança nas pessoas. A alternativa é cair nas trevas da loucura humana, e definhar.
Paul Auster é um mestre da literatura, e As Loucuras de Brooklyn uma verdadeira pérola, que se lê com gosto, e que quando se termina deixa uma vontade de ler mais na nossa mente.