domingo, 2 de abril de 2006
Amarcord
IMDB | Amarcord
Wikipedia | Federico Fellini
Amarcord
Federico Fellini, recentemente desaparecido, ficou para a história do cinema como o mais onírico dos realizadores, um mestre do encantamento capaz de conjurar cenas poderosas, sensuais e profundamente tocantes. Em 1973, Fellini realizou Amarcord, uma das suas obras-primas cinematográficos.
Amarcord vem de um dialecto italiano e significa "recordo-me". A recordação nostálgica de tempos de antanho parece ser o tema de Amarcord, mas não estamos aqui a falar de um filme qualquer. Estamos a falar de uma obra-prima criada por um mestre do cinema no auge da sua carreira, o que siginifica que Amarcord contém camadas sobre camadas de nuances e significações.
Uma família verdadeiramente sui generis
Amarcord não é um filme linear. A única linearidade presente no filme é a passagem das estações. Todo o filme é composto por vinhetas, aparentemente desconexas, mas que retratam eficazmente a visão de Fellini da vida numa cidadezinha fictícia na Itália dos anos 30 - uma cidadezinha que muitos vêm como Rimini, terra natal de Fellini. Seguimos, de uma forma fragmentada, a vida de Titta, jovem rapaz no dealbar da puberdade, e os seus cruzamentos com as personagens que fazem acontecer a vida na cidade italiana. Titta é um rapaz como todos os outros, interessado em brincadeiras que hoje lhe valeriam suspensões constantes da escola. Tem de suportar os estudos numa escola infestada de professores que vão do incompetente mas bem intencionado ao optimista enlouquecido que se limita a debitar slogans fascistas. E busca a mulher, que lhe surge nas formas rotundas da tabaqueira, mulher possante e mamalhuda que faz tremer a rapaziada quando lhes pergunta, em voz rouca, se querem um cigarro dos baratos, e na elegância de Gradisca, a vamp da vila. Mas o filme não se esgota em Titta. Acompanhamos também a sua família, um bizarro aglomerado de seres humanos composto por um avô que passa a vida a apalpar o rabo da empregada, um pai, construtor civil de inclinações socialistas, que ferve em muito pouca àgua mas nem por isso deixa de ter bom coração, uma mãe neurótica que perante o berreiro e o ateísmo do marido e as traquinices dos filhos passa a vida a dizer que se suicidará e depois envenenará a comida da família com estricnina, e dois tios, um profundamente louco que vive num manicómio e outro profundamente inútil que nada faz, para além de passar as noites a beberricar nos cafés da vila. No verão, este tio inútil encontra outra ocupação: é engatatão de hotel, especializado em murmurar expressões amorosas que derretem os corações das turistas que vêm até ao grande hotel da vila em busca de férias, sol e mais qualquer coisinha.
La Gradisca, sonhadora entre sonhadores
A Gradisca é outra das grandes personagens do filme. A mulher mais bela da vila, que faz virar as cabeças dos homens sempre que passa na rua, rodeada pela sua entourage de solteironas um niquinho mais feias do que ela, a Gradisca é a sex-symbol da cidade. Ela busca o amor perfeito, consubstâncializado nas imagens a preto e branco dos grandes filmes de hollywood com Clark Gable que passam no cinema da vila. Mas também sabe que está a envelhecer, e acaba por trocar o seu estatuto de mulher com quem todos os homens sonham, símbolo de uma elegância sexual intangível, pelo estatuto de mulher casada com um oficial fascista que a leva para uma nova vida em Roma.
Amarcord é um filme que vive de vinhetas em que estes personagens se cruzam numa vida quotidiana polvilhada com um toque surreal. Mas Amarcord não se esgota nestas personagens. Trata igualmente das histórias, umas entristecedoras, outras profundamente oníricas, das personagens que habitam a vila. Uma dessas cenas é a história de Biscein, o pobre vendedor de tremoços e sementes de melancia salgadas. Biscein jura a pés juntos que quando o grande sultão turco se instalou no grande hotel com o seu hárem de quarenta mulheres, estas desfizeram os seus véus e construíram uma corda para içar Biscein para os seus aposentos, onde este viveu uma noite de sonho e exotismo oriental digna das mil e uma noites.Parece haver um narrador, um advogado apaixonado pela vila que sempre que tenta contar a história da vila é interrompido por arruaceiros. É esse o narrador que nos contextualiza, que faz a ponte entre as reminiscências da vida do adolescente e a vida de toda a vila.
Amarcord é um filme cheio de grandes cenas. Enumerá-las seria fastidioso, e classificá-las ainda mais. Há a cena do voglio una donna, onde o louco tio de Titta sobe a uma àrvore e berra a plenos pulmões que quer uma mulher; há a cena onírica de Biscein e as quarenta concubinas, plena de sensualidade exótica; há a cena do nevoeiro, em que o avô de Titta se perde no nevoiro frente à sua casa e pensa que está morto. As cenas da vida escolar são profundamente hilariantes, e outra das cenas no nevoeiro, com o irmão de Titta a encontrar-se com uma manada de bois que no nevoeiro assumem o espírito de criaturas mitológicas, é simplesmente apaixonante. Há as inúmeras cenas da Gradisca a estontear os homens da vila, há a cena em que se justapõe a chegada das novas prostitutas do bordel da cidade Às imagens de piedade cristã iconizadas na sagrada família; há a cena em que Titta é literalmente afogado pelos enormes seios da mulher dos tabacos. Todo o filme é um aglomerado de cenas memoráveis, que não se esgotam numa só visualização.
Marcha fascista
Uma das cenas mais emblemáticas do filme é a visita dos fascistas. No aniversário da fundação de Roma, a vila pára. Vem à vila um alto responsável fascista, e toda a vila se embeleza. As ruas estão engalanadas com bandeiras italianas e bandeiras do partido fascista. Os rapazes e as raparigas vestem os seus uniformes da juventude fascista, os Ballillas e as Filhas da Revolução. Os professores vestem o seu uniforme negro de oficiais fascistas. Toda a vila aguarda aguarda ansiosamente a chegada do comboio que trará o alto dignatário que se digna a visitar tão humilde vila. Quando o comboio se aproxima, a banda começa a tocar, uma fanfarra digna do militarismo emplumado do fascismo. Mas nada vemos, ninguém parece sair do comboio. Enquanto a banda toca, da entrada da estação começa a sair um profundo fumo negro, prenúncio da destruição que o fascismo iria semear na Itália, e do centro dessa nuvem negra saem os uniformes negros dos líderes fascistas. O que se segue é um exercício estilístico na ridicularia política. O resto do dia é passado entre discursos apressados, cheios de slogans vazios de conteúdo, e demonstrações militarizadas da nova ordem fascista. Mas mesmo assim, ainda há tempo para sonhos incoerentes de adolescente, oficiados por um rosto de mussolini feito em rosas brancas e cor de rosa.
Amarcord é um filme apaixonante, que nos cativa pelo seu onirismo, pela paixão que coloca no retrato surreal de vidas que já se desvaneceram. Amarcord apela à nostalgia de tempos passados, sem cair numa emoção delicodoce que esquece o que de mau houve no passdo. Mas, antes de mais, Amarcord é um filme repleto de imagens de sonho, realizado por um mestre no auge da sua carreira que soube aproveitar ao máximo todos os elementos que se conjugam neste grande filme. A colaboração de Nino Rota, autor de uma banda sonora que oscila entre o nostálgicamente banal e o profundo onirismo que combina na perfeição com as imagens surreais de Fellini, é fulcral para completar este filme. Amarcord é um filme que se vê, e revê. Nunca cansa, nunca passa de moda. Amarcord fica na nossa mente, fica nos nossos sonhos.