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sábado, 31 de março de 2018

Rascuhos na Voz Online


Tenho andado com pouco tempo para o fandom geek, culpa das aventuras no derretimento controlado de termoplásticos. Esta notícia já me tinha cruzado o radar, mas ainda não a tinha registado. É uma iniciativa significativa, que mostra o crescimento sustentado da comunidade de fãs de fantástico, ficção científica e fantasia por cá. Não parece, mas o crescimento de iniciativas, eventos e edições tem sido assinalável, muito graças ao dinamismo de algumas das personalidades que se destacam no meio cultural. Um programa de rádio online, regular, a discutir literatura de FC & F e coisas geek só pode ser mais uma excelente iniciativa, e a Cristina Alves está de parabéns pelos programas. Podem ouvi-los na página Mixcloud da Rádio Voz Online. Pessoalmente, vou testar se não são dissonantes com o zumbido do extrusor a depositar filamento.

domingo, 29 de outubro de 2017

aCalopsia: Festival Bang!


Não pareceu bom augúrio chegar a uma entrada do Pavilhão Carlos Lopes e vê-la quase vazia. Estaria a primeira edição do Festival Bang! condenada ao fracasso? Ou teria chegado demasiado cedo e o grosso dos visitantes ainda estaria para vir? Entrar dentro do espaço do festival dissipou as dúvidas. Não havia multidões, mas sentiu-se que os fãs do fantástico aderiram bem a esta nova iniciativa no panorama das culturas de género em Portugal. Registo deste primeiro Festival Bang! no aCalopsia.

Algumas notas, que não faziam sentido no âmbito do aCalopsia:
- Muito bizarro ver a organização da Associação de Cosplay sublinhar tanto o aspeto pedagógico e intergeracional do cosplay. Todo aquele discurso sobre aquisição de competências e integração da juventude pareceu-me um pouco pateta e muito redutor do potencial cultural do cosplay. Se calhar reajo assim por ser professor, e estar demasiado calejado por discursos similares que tentam convencer o público generalista da importância das artes não pelas suas qualidades intrínsecas mas por serem pedagógicas ou educacionais. Um argumento que é incrivelmente redutor. É trauma, eu sei, desde que sou adolescente que ouço falar da extrema importância de Astérix porque ensina os meninos sobre os romanos, enquanto tudo o resto da BD é desconsiderado. Trinta anos depois, tenho a mesmíssima discussão com os meus colegas de trabalho. A velha conversa do ah, sim, banda desenhada, o Astérix sim por causa dos romanos, já o resto... (troquem BD por Ficção Científica, Fantasia, transreal, gaming, artes em geral, que o argumento é o mesmo). O que me intriga no cosplay é o seu potencial expressivo e cultural, uma celebração de fãs que encarnam as suas personagens favoritas. Felizmente, as cosplayers presentes sublinharam pela sua atitude essa dimensão de paixão pela cultura.
- Hey, ter os brains picked pelo André Silva sobre The Orville e Star Trek Discovery made my day. Ambas são séries controversas, Discovery pelo sentido negro que dá ao universo Star Trek (fico com a sensação que a mensagem que transmitem é que se queremos ter um paraíso utópico no futuro, temos de ter uns cabrões sem escrúpulos que derrubem tudo à frente para o construir), The Orville pela forma como nos faz redescobrir quer Star Trek quer o lado optimista da Ficção Científica clássica. The Orville interessa especialmente pela forma como amadurece de episódio em episódio, sem perder a vertente comédia e mantendo-se como vénia honrosa a Star Trek.
- Não é boa notícia saber que a tertúlia Sustos às Sextas entrou em hiato, por sobrecarga dos organizadores. Felizmente, o António Monteiro decidiu manter viva a chama com uma newsletter regular, também chamada Sustos às Sextas, cujo primeiro número está para breve. Funciona através do email, e enviará regularmente à lista de assinantes uma publicação com notas de lançamentos, críticas e artigos sobre terror. Infelizmente, ficam de fora os deliciosos morcegos de gengibre.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Recordar os Esquecidos


Não estive presente em tantos quanto gostaria, mas a este recuso faltar. O imparável João Morales termina aqui o seu ciclo de tertúlias Recordar os Esquecidos, onde mensalmente convidava escritores para recordarem autores injustamente esquecidos, ou a cair no esquecimento. Do press release da Livraria Almedina:
Recordar os Esquecidos na Livraria Almedina Atrium Saldanha

(Última sessão)

A sessão deste mês do Recordar os Esquecidos reveste-se de um carácter especial. Calha no dia 24, como habitualmente, um Sábado, às 18h, e

encerra dois anos e meio de actividade ininterrupta desta iniciativa mensal. Para a conversa deste mês, trazemos quatro convidados muito especiais: os editores Guilhermina Gomes (Temas & Debates; Círculo de Leitores), João Rodrigues (Sextante), Maria Afonso (Antígona) e Hugo Xavier (E-Primatur), que vão partilhar connosco as suas sugestões de livros.

Numa época em que tantos milhares de livros são publicados a cada ano, a memória pode ser curta e traiçoeira. Recordar os Esquecidos foi um encontro mensal na Livraria Almedina Atrium Saldanha, em Lisboa, para falar sobre livros e autores que caíram no esquecimento ou até mesmo passaram (injustamente) despercebidos.

O nosso mais sincero agradecimento a todos os convidados, ao público, à equipa da Livraria Almedina Atrium Saldanha e, naturalmente, ao
jornalista João Morales, que conduziu as 29 sessões. Todos foram fundamentais para a concretização desta iniciativa.

Recordar os Esquecidos decorreu na tarde do último Sábado de cada mês, e começou em Janeiro de 2015, ano em que a Almedina celebrou 60 anos de existência.

E agora é esperar pela próxima iniciativa do Morales, uma daquelas pessoas que tem, felizmente para todos nós, uma tremenda incapacidade de estar quieto.

domingo, 21 de maio de 2017

Sustos às Sextas: Sugestões de Leitura



O João Castanheira, da organização desta tertúlia literária que decorre no palácio dos Aciprestes, convidou-me a vir à última sessão da terceira temporada dos Sustos às Sextas para partilhar sugestões de leitura sobre ficção científica e terror, o tema de uma sessão que contou com um painel de gigantes com  o João Barreiros, Cristina Alves e Luís Filipe Silva.

Se aceitei com entusiasmo, até porque ficaria finalmente com uma das famosas canecas da tertúlia, ao aproximar-se a data da intervenção a vontade de a fazer era muito pouca. Não por descrédito à tertúlia. Digamos que desde o momento em que recebi o desafio e o dia de o cumprir, um projeto muito especial da minha vida profissional acelerou enormemente e o tempo livre reduziu-se muito. Os workshops e demonstrações sucedem-se, o entusiasmo é muito, mas os dias passados a falar sobre impressão 3D, de volta da robótica, em eventos e demonstrações pesam nos ossos. Isso, e os quilómetros que tenho feito. Desta temporada dos Sustos, só compareci a esta sessão. Uma vergonha, bem sei, mas tenho chegado às sextas-feiras extenuado e a precisar das horas de sono para no dia seguinte me meter à estrada e ir para outros desafios.

É um mal que afeta outras vertentes. De tal forma que quando cheguei aos Aciprestes, a mulher do João Barreiros comentou que estava a assistir ao regresso do desaparecido. Pois, certeiro com muita graça e razão... e foi um regresso fugaz. Tenho falhado os Sustos e os jantares dos Devoradores de Livros. Confesso que me faz falta o mergulho nas culturas para equilibrar as tecnologias. Aliás, mais do que equilibrar, ganhar inspiração, porque (se me permitirem o convencimento), o que me distingue nas abordagens à tecnologia é a minha postura de incentivo ao seu uso como ferramenta criativa. Despedi-me deles com um até ao Sci-Fi LX. Aí não conto faltar.

As páginas de um livro de terror são umas das minhas recordações literárias de infância. Lembro-me de os meus pais me terem oferecido um monte de livros, teria para aí seis anos (fui um leitor precoce, ensinado a ler em casa por uma antiga preceptora e o método João de Deus). Desse monte, só me recordo de um, pelos arrepios e pesadelos que provocou. Recordo-me de o abrir e ficar assuatadissimo pelas imagens de um castelo sombrio, povoado por espectros que atazanavam o pato Donald e os seus amigos. Era, curiosamente, um livro da Disney... não revista, um livro ilustrado sobre a Casa Assombrada.

Sendo mais inclinado para os voos especulativos da FC, não há muito que vos possa oferecer no que toca ao horror na literatura. Gosto de um bom arrepio literário, mas não é esse o foco das minhas leituras. Aliás, nestes tempos sinto que estou a viver profundamente mergulhado na science fiction condition. Nos dias que correm, o verdadeiro horror para mim é ter uma daquelas peças de oito horas de impressão a falhar ao fim de sete horas e meia porque o filamento se enrolou, ou limpar um extrusor e tocar no nozzle esquecendo-me que aquela jiga-joga está aquecida a 200º. Acreditem que são coisas que provocam gritos lancinantes do mais profundo e doloroso horror.

Suspeito que depois das sessões anteriores e sugestões dos seus convidados, esta minha lista peque pela banalidade, pelo esperado. Sem querer fingir ser um expert em literatura de terror (e se o tentasse, o António Monteiro logo me desmascarava), deixo aqui uma lista de sugestões, que destaco não pela sua importância literária, qualidade intrínseca, mas por terem sido livros que me tocaram, arrepiaram, ou deixaram a sonhar com paisagens tenebrosas. Alguns, insuspeitos, surpreenderam-me pela sua ligação com a ciência e tecnologia.



Começo com o primeiro livro de terror que me recordo de ter devorado, Dracula de Bram Stoker. De tudo o que se pode dizer sobre essa obra fundamental no horror, diria que o aspecto que me surpreendeu foi a sua modernidade. Já imaginaram que este livro, à época em que foi publicado, poderia ser uma verdadeira obra de ficção científica sobre o futuro próximo? Suspeito que lido pelos olhos de um leitor do século XIX, Dracula pareceria quase futurismo próximo. O terror medieval do vampiro é combatido com as armas da ciência e tecnologia da época. As velhas superstições são complementadas por perseguições de comboio, ou personagens que registam as suas narrativas utilizando gravadores de som.



Se falamos de futurismo e terror, Frankenstein de Mary Shelley é o livro incontornável. Aliás, a sua associação com a literatura de terror é algo injusta, uma vez que no livro o monstro não é a criatura, é o seu criador, e a criação é feita com as ferramentas da lógica, química e electricidade, não com encantamentos cerimoniais do além. Diria que este romance é o mito original que, nesta era dependente da tecnologia, nos define.


Não se se recordam que houve um tempo antes da internet? Em que não havia Amazons, e-books e quando marcávamos encontros tínhamos mesmo que estar nos locais à hora certa, porque não havia telemóveis para comunicar. Soube de Lovecraft nesses tempos, através de artigos em zines e revistas, mas demorou até ter conseguido lê-lo. Os Demónios de Randolph Carter, na edição tenebrosas das Edições B, foi o meu primeiro mergulho na obra do bardo de Providence. Impossível não ficar apaixonado pelo misto feérico de exótico e orientalismo das suas visões do mundo dos sonhos que Carter atravessa.


At the Mountains of Madness e as geometrias não-euclidianas da cidade sob os gelos cimentaram o gosto, os contos fizeram o resto. Mesmo sabendo que pelos nossos padrões a misogenia e racismo de Lovecraft são complicados de aceitar.


Imajica, de Clive Barker, seduziu-me precisamente por esse aspecto de fantástico grotesco. Já não recordo o enredo e as aventuras, e honestamente não me sinto particularmente disposto a a revisitar o livro. O que ficou foi a visão sedutora, orientalista, exótica, das arquitecturas de mundos de fantasia invocados pelo autor. Books of Blood e Cabal à parte, a obra de Barker sempre me pareceu ser bastante banal, mais a apostar na escatologia sexualizada e a repetir-se nos esquemas narrativos.

E quanto ao terror literário em português?


Talvez a melhor descoberta tardia que fiz este ano, O Físico Prodigioso de Jorge de Sena seduz pela forma mágica como entretece o imaginário medieval, antigas lendas e um fantástico carregado de erotismo.

 
Quanto a Lovesenda de António de Macedo, podia salientar qualquer outro livro deste autor e cineasta, mas olho para este por ser o mais recente e potencialmente dos menos lidos (baixa tiragem, editora independente). Mistura uma capacidade fortíssima de nos levar ao ambiente do passado histórico com o fantástico místico e gnóstico que é a marca de Macedo.
 

Os Ossos do Arco Íris de David Soares: Foi o meu primeiro choque com o autor, e a descoberta que existia uma corrente cultural portuguesa contemporânea nas culturas de género. Poderia salientar qualquer outro livro deste autor, aponto este por ter sido indicador de algo maior. Um pouco isolado do contexto da FC e Fantástico nacional, suspeitava que alguns autores existiam, suspeita alimentada por números perdidos da Simetria que encontrava esquecidos em livrarias, ou os nomes portugueses nas capas azuis da lendária coleção da Caminho.

 
Museum of Horror de Junji Ito foi a obra que me deu a conhecer o mangá de terror japonês, com uma personagem arrepiante, Tomie. Fantasma de rapariga assassinada por um namorado obcecado, compraz-se fascinar homens e mulheres com a sua atração sobrenatural, levando-os à loucura homicida ou à degradação violenta do body horror. Sem redenção. Nesta série, o que o espírito procura não é o alívio da sua dor, mas a propagação abjecta da sua morbidez. É o aspeto que mais seduz nesta obra, o contraponto à nossa tradição que dita que o espírito malévolo apenas procura a o descanso final da redenção.



Os Vampiros de  Filipe Melo e Juan Cavia. É impossível não falar deste trio de autor e ilustradores, pelo impacto que tiveram no panorama da BD portuguesa com a trilogia Dog Mendonça e Pizzaboy, e, no caso específico de Filipe Melo, pela sua importância como ícone da cultura g33k. Neste seu livro mais recente, misturam história portuguesa contemporânea, hordas vampíricas e a claustrofóbica mentalidade de cerco de personagens cercados numa casa. O resultado é um livro eficaz, que tanto seduz os amantes do fantástico como os defensores de culturas mais "sérias".
 

Não consigo deixar de falar de uma das minhas obsessões pessoais. Dylan Dog é um dos meus fascínios, personagem de fumetti que investiga casos sobrenaturais. Não é nenhum Sherlock ou caçador de monstros, vive ao sabor dos casos com que se cruza e é pouco interventivo, muitas vezes um assistente nas suas aventuras. Tiziano Sclavi destila a história do terror literário e cinematográfico neste personagem melancólico, tocador de clarinete e construtor de um modelo de galeão eternamente inacabado, sempre a apaixonar-se pelas mulheres com que se cruza. Attraverso lo Specchio é um bom exemplo das suas aventuras, num cruzamento de Poe com horror clássico, Lewis Carroll e slasher movies.

 
Afastado da série, a personagem está entregue a outros argumentistas, dos quais se destaca Roberto Recchioni. Não tão texturado ou referencial como Sclavi, mas compreende bem o personagem. Mater Morbi é das suas melhores histórias, quase fetichista na iconografia.


Falar de Dylan Dog obriga a falar de Dellamorte Dellamore, romance em fragmentos de Sclavi, um dos pontos de partida do que se viria a tornar o personagem de fumetti. Francesco Dellamorte é o coveiro do cemitério da cidade esquecida de Buffalora, na Itália profunda. Como coveiro, a sua principal tarefa é manter os mortos enterrados, num cemitério onde poucos dias após o enterro os defuntos regressam a vida como zombies. O filme de Michele Soavi que passou, recentemente, no Nimas, faz justiça à bizarria desta obra, mas o livro vai muito mais longe no seu surrealismo tétrico.



Para finalizar, sugestões de leitura contemporâneas. Providence, um longo e profundo mergulho de Alan Moore no Mythos lovecraftiano, entretecendo fios condutores entre a sua obra, as dos seus seguidores (Derleth, Bloch e Chambers são referênciados) e influências culturais, com um final apropriado de apocalipse surreal que nos mostra que, talvez, as ficções que nos deleitam são m verdadeiro mundo em que habitamos.



Harrow County, a ser editado em português pela G.Floy, onde a ruralidade do Sul profundo nos anos 20 como palco para histórias de terror cheias de mitos tradicionais. Cullen Bunn aborda este título um pouco como um Faulkner do horror.

 Afterlife with Archie: e que tal pegar num comic de piadas adolescentes e transformá-lo num épico de terror com zombies e criaturas lovecraftianas? Uma proposta inesperada e divertida, onde Roberto Aguirre-Sacasa, acompanhado por Francesco Francavilla na ilustração, destrói a premissa dos comics da Archie - a vida de eternos adolescentes numa small town americana, com extremo prejuízo.



Para finalizar, as iconografias clássicas da Creepy, notável pelo formato influente de história curta com final macabro e irónico, mas especialmente como caldo onde germinaram alguns dos mais influentes artistas dos comics, Alex Toth, Bernie Wrightson, Steve Ditko, entre muitos outros, cujos grafismos inconfundíveis marcaram de forma indelével a estética dos comics de terror.

domingo, 20 de março de 2016

Sustos às Sextas (III)

Foto surripiada à página facebook de David Soares. Belíssima t-shirt. Desta vez não houve fotos minhas. O rolo neuronal estava a esgotar-se.


Creio que devo ter adormecido algumas vezes durante a palestra de David Soares, ontem, no Sustos às Sextas. É algo horrível de dizer, mas a culpa não foi do orador. Pelo contrário. Mesmo com o cérebro toldado de sono, fiquei intrigado, aprendi coisas que desconhecia, e fascinado pela teia de ligações históricas entretecida na palestra. Se cabeceei muito, a culpa é destas minhas semanas de dias longos e noites curtas. Ao final do dia, os desafios da vida de professor e impressor 3D pesam nos ossos. Depois de três dias da Futurália a explicar a pedagogia da impressão 3D a jovens, adultos, professores, responsáveis governamentais e visitantes em geral, o cansaço pesa. E ainda terei mais um dia destes pela frente.

David Soares falou-nos sobre a Literatura Gótica, com o ponto de partida na tafofilia mas expandindo-se para a história da era moderna, e reflectindo no que é exactamente isso de gótico, termo de muitas associações. Terá nascido na arquitectura, com a atribuição do estilo que sucedeu ao românico à influência dos bárbaros que estilhaçaram o império, ou terá raízes mais obscuras, dentro das descrições da antiguidade clássica dos rituais mágicos persas? Heródoto é incontornável, como bem sabemos, e Vasari e Santo Agostinho não lhe ficam atrás. Fico à espera do obrigatório vídeo da palestra, para retirar aquelas sugestões de leitura que a minha mente ensonada não memorizou.

A palestra foi antecedida de um surpreendente momento dramático. Quando leio num programa leitura dramatizada de poemas, tremo. Lá vem alguma dicção trémula e monocórdica, penso. Não foi o que aconteceu, foi mesmo uma dramatização com dois poemas, de Siegfried Sassoon e Goethe. Um momento que envolveu música, dança, récita e encenação. Fantástico, o momento em que uma das participantes entra no salão do Palácio dos Aciprestes, ao som de um violoncelo soturno, em passo hierático segurando um candelabro bruxeleante. Sublinha o lado fortemente classicista desta tertúlia.

Esta terceira edição ainda contou com a inauguração da exposição Ocultus, do pintor Nuno Rodrigues, inspirada na literatura gótica. Algo que deve ter dado motivo para boa discussão na pausa para café, depois das opiniões de David Soares. Encerraria com a dramatização de um conto de Jean Ray, mas confesso que após a palestra, desisti de combater o cansaço e fiz-me à estrada. Quando se quer tocar a muitas campainhas, por vezes as forças abandonam-nos. Como o dia seguinte iria ser um dia intenso às voltas com impressão 3D, optei por ir repousar. Com grande pena minha, porque mais uma vez a organização deste evento estava impecável.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Sustos às Sextas 2.0 (I)

João Castanheira, a abrir o primeiro (ou o sétimo?) Sustos às Sextas.

Rumar novamente, numa noite gelada de janeiro, ao assíncrono Palácio dos Aciprestes, com a sua curiosa arquitectura neo-gótica implantada no meio do sprawl suburbano da periferia lisboeta. There, and back again, e esse é o único tolkienismo que me ouvirão proferir. Regressou o Sustos às Sextas, a tertúlia dedicada ao terror literário e noutras artes, acolhida no grande salão deste palácio com o sempre erudito António Monteiro como anfitrião.  A segunda edição desta iniciativa que nos cativou no ano passado promete ser mais ambiciosa, mantendo o formato de cruzamento entre artes e presença de convidados para entrevista ou palestra, mas apostando num visual mais cuidado e no registo das sessões. Também investiram numa série de adereços, que diria que são uns coleccionáveis interessantes. Especialmente as canecas, que se tornaram no troféu a atribuir aos convidados do evento.

 António Monteiro, Vanessa Fidalgo e João Castanheira à conversa sobre o lado mais leve do sobrenatural da tradição popular contemporânea.

A sessão arrancou com uma interpretação em piano a quatro mãos da Danse Macabre de Saint Saens, que surpreendeu pelo talento e capacidade técnica das pianistas. Confesso que tenho alguns traumas com este tipo de "momentos musicais" (expressão que abomino). Recordo com um muito arrepelado carinho um em especial, com uma menina balofa de oito anos a assassinar inocentemente Bach sob o olhar babado de pais, professores e burocratas da Direcção Geral de Educação numa cerimónia de entrega de prémios educativos. E nem foi dos piores a que já fui submetido. Por isso, sempre que leio "momento musical" num programa de evento, temo o pior. Não tem sido o caso dos Sustos, e o de ontem foi surprendente, e muito bom. Quatro mãos, um piano bem afinado na acústica envolvente do salão, o distante ruído da lareira a crepitar, e impossível não reparar no pormenor fantasmagórico das mãos reflectidas no verniz negro do piano, a dar a sensação de desincorporação.

Seguiu-se a conversa entre António Monteiro, João Castanheira e Vanessa Fidalgo, a convidada da primeira edição desta segunda temporada. Vanessa Fidalgo é jornalista e demonstra uma ponta de carinho com as histórias e tradições do sobrenatural português, que tem recolhido em livros editados pela Esfera dos Livros. Na conversa, a autora falou-nos de como nasceu o seu gosto pelo sobrenatural, nutrido pela literatura fantástica, e partilhou algumas histórias das suas reportagens e investigações de recolha de tradições, lendas orais e histórias de maldições, assombrações e outras inquietudes. Aqui por este blog o tom dominante é ficção científica e tecnologia, apesar de não se desdenhar um bom susto, desde que não seja filamento derretido a entupir o extrusor. Desconheço os livros de Vanessa Fidalgo, mas a curiosidade ficou desperta. Intrigou-me a postura de curiosidade e fascínio, explorada num registo jornalístico com toques de recolha antropológica, mas sem os espartilhos trazidos pela necessidade de rigor académico.

 Release the bats?

Os morcegos estão de regresso. Confesso que não os provei. Dediquei-me a devorar fantasmas. É este o outro bom pormenor desta tertúlia, o permitir reunir fãs do fantástico literário e reencontrar amigos e conhecidos que partilham este interesse, para conversar sobre estas ideias que nos fascinam entre uma dentada num morcego e um gole de café. Sempre muito café, no meu caso, que isto as sextas-feiras são sempre longos dias no final de longas semanas.






António Monteiro invocando monstros na serra do Caramulo.

Para encerrar esta primeira sessão, António Monteiro sublinhou o lado literário deste evento lendo um dos seus contos, recordando-nos do papel que a literatura em geral, e a fantástica em particular, tinha nos tempos passados, onde os serões eram passados à luz bruxuleante da vela a ouvir ler. Um toque de dead media, nestes dias em que o cérebro tem muito à escolha para se distrair, em que a ubíqua electricidade conquistou há muito as trevas da noite e já mal recordamos o princípio elementar de todas as histórias: a voz humana a cortar o silêncio.

Bolas, isto soou algo pretensioso. Suspeito que esteja a precisar de reabastecer a chávena de café.

Sabe bem ter de volta este evento. Momentos em que os fãs destes géneros culturais se encontram rareiam. No ano passado a informalidade do Sustos às Sextas afirmou-o como mais um espaço de encontro, este ano a proposta renova-se, com algumas novidades. Uma delas deixa-me incerto. A colaboração de uma empresa de multimédia corporate na recolha de imagens e posterior edição vídeo das sessões traduz-se na presença de técnicos de câmara ou microfone em punho às voltas por entre os participantes. É distractivo, quebra a informalidade, e tem o seu quê de irritante estar concentrado nos momentos do evento mas ter na visão periférica aquela sensação de vigilância que se sente quando uma lente está nas proximidades. Os técnicos não foram muito subtis na sua presença, ontem. E, já agora, uma dica técnica: talvez não seja boa ideia usar sistemas sem fios de comunicação entre projector e computador para projectar. Questões de largura de banda.

A próxima sessão está marcada para dezanove de fevereiro. Está na agenda, claro.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O Regresso dos Sustos



Não sendo uma notícia completamente inesperada, uma vez que os organizadores da primeira temporada da tertúlia Sustos às Sextas já tinham assumido a vontade de lhe dar continuidade, é bom saber que o seu regresso já está a ser preparado. De acordo com os organizadores, a segunda temporada está confirmada, renovando a parceria com a Fundação Marquês de Pombal e garantindo que de Janeiro a Maio de 2016 os apaixonados pelas letras aterradoras tenham abrigo seguro no salão do Palácio dos Aciprestes. O programa está em preparação. Quanto a datas não há ainda informação, mas se olharem com atenção para o calendário de 2016 dir-se-ia que há uma sexta-feira perfeita para o evento. Não revelo qual. Façam um esforço. Vá lá, deslizem o cursor do vosso rato para o calendário e arrepiem-se.

É de sublinhar que a organização da tertúlia não só escolheu os dias do MOTELx para lançar esta boa novidade como está de parabéns por lançar a faísca da exposição de ilustrações das figuras míticas do terror correntemente integrada no festival de cinema. Esta teve a sua génese no Sustos às Sextas e tem sido bem aproveitada pela El Pep.

Deixo-vos com a nota da organização do Sustos (os infatigáveis João Castanheira, Sandra Araújo e António Monteiro):

É oficial!Com o terror em alta graças ao MOTELx, que está em grande destaque esta semana, a Organização dos Sustos às...
Posted by Sustos às Sextas on Quarta-feira, 9 de Setembro de 2015

(Sabem o que é que isto quer dizer, não sabem? Mais oportunidades para trincar aquelas belas bolachinhas de gengibre em forma de morcego!)

sábado, 16 de maio de 2015

Sustos às Sextas (V)


A má notícia é que terminou. A boa, é que ficou muito em aberto, quase certa, diria, a possibilidade de uma segunda temporada. Pela última vez rumei às wildlands do sprawl suburbano para a quinta edição desta tertúlica classicista dedicada ao Terror literário, que durante cinco semanas se entrecruzou no grande salão do neo-medievo Palácio dos Aciprestes. Que, ao que consta, é assombrado, o que explica alguns ruídos estranhos que se ouviram naquelas noites. E, talvez, um crepitar temeroso da lareira durante uma leitura de um conto de horror.


Para encerrar a primeira temporada Rogério Ribeiro, o infatigável organizador do Fórum Fantástico, levou-nos numa sinuosa viagem pela história da ciência cruzando o rigor científico e as superstições espíritas. Como não podia deixar de ser, também nos levou a uma curta viagem pela iconografia do cientista louco, definitivamente cimentada nos anos 20 com Rotwang de Metropolis naquele misto de sabedoria sem fronteiras com tendências hubrísticas de domínio. Como sublinhou neste momento, o lado prometeico, de curiosidade sem limites, traz sempre consequências e quer a Ficção Científica quer o Horror sublinham o lado mais catastrófico e, de certa forma, moralista. Recordei-me daquele ditado popular que nos diz que a curiosidade é a principal causa de morte por entre os gatos, reflectindo este paradoxo entre uma humanidade desde sempre dependente de tecnologia e ciência que del desconfia, vendo com olhos melindrosos os espíritos inquietos que questionam, investigam e fazem avançar as fronteiras do conhecimento, imortalizando o querer ir mais alto com o castigo da queda em chamas.

Emanuel Marques, autor do conto O Aniversário, vencedor do concurso literário do Sustos, recebeu o prémio das mãos de Safaa Dib, editora da Saída de Emergência, e António Monteiro, organizador do evento. O conto foi lido, e será publicado na próxima edição da Revista Bang!.

Para encerrar com chave de ouro, sublinhando a progressiva informalidade de um grupo de fãs do fantástico que com este tipo de eventos aprofunda laços, participámos num quizz sobre Terror. Desafiado pelo Rogério Ribeiro, alinhei na equipe dos Cientistas Loucos (tecnicamente trabalho em Ciências da Educação). Para surpresa mútua demos conosco na ronda final, derrotados apenas pelo implacável David Soares. Mas hey, perder para o eminente escritor dos melhores livros de terror que se publicaram nos últimos tempos por cá é uma honra. E nada mau, os tipos dos foguetões e das rayguns aguentaram-se bem no meio dos espectros que assombram e das criaturas da noite.

Esperemos agora pela próxima temporada. A organização, a começar por António Monteiro, e estendendo-se a muitos outros (não listo porque correria o risco de ser injusto), está de parabéns quer pelo evento quer por ter mantido elevada a qualidade e o interesse. Estes Sustos às Sextas foram uma delícia. Como dizia Monteiro, é preciso ler mais M.R. James.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Sustos às Sextas (IV)


Está quase a terminar estar interessante tertúlia que me tem levado mensalmente às wildlands do sprawl suburbano de Linda-a-Velha, ao espaço neo-medievo do Palácio dos Aciprestes. Para a sessão deste mês a organização reservou-nos pomeas de Baudelaire, canções de Charles Sangnoir e uma palestra de David Soares.

Da declamação poética não guardo memória. A voz é um instrumento e é preciso saber usá-la. Já Sangnoir foi uma excelente surpresa. A sua voz de um optimismo cristalino contrastava com a negrura das palavras cantadas ao piano, com o seu quê de burlesco decadente. Podem ver aqui uma das canções que Sangnoir partilhou conosco, O Bordel de Lúcifer, e ficar com uma pálida ideia da beleza tenebrosa da sua música. Pelo Spotify também deparei com o disco Os Anormaisa quatro mãos com David Soares que merece exploração.


Mas foi David Soares o dono desta noite de sustos. Pela feliz coincidência de calhar no seu aniversário, mas principalmente pela longa palestra que nos deu com o tema À Mercê da Medicina: Farmacologia Canibal na Europa e em Portugal na Prática e na Cultura. Os mais incautos esperariam uma conversa cheia de deliciosos pormenores escabrosos e titilância do nojo visceral, mas quem conhece um pouco da obra do autor sabe que Soares tem uma profunda e culta inteligência, que vai sempre muito mais além do mero deslumbre com o chocante e tenebroso. Ao longo de hora e meia falou-nos do canibalismo ao longo da história, com foco nas práticas ritualistas e fúnebres que ainda hoje persistem não só nos locais tradicionalmente esperados mas em modas, tendências e parafilias que se mantém como corrente no mundo contemporâneo. Falou-nos também das tradições medicinais pré e proto-científicas que recorriam ao corpo, aos seus fluídos e dejectos na crença de cura das maleitas. Interessante, sem dúvida, mas o cerne das questões que levantou não estavam nas histórias de canibalismo, nas curiosidades de outras épocas ou na morbidez do tema.

Soares fez sempre questão de nos levar a olhar para estas práticas que nos causam repulsa e horror sob a lente dos pressupostos contemporâneos dos tempos em que decorreram. Vi aqui a pairar um espectro do que Evgeni Morozov apelida de epocalismo, a ideia que a nossa época, aquela em que vivemos e nos molda o pensamento, é social, ética e tecnológicamente a mais avançada e que as que nos precederam são tempos bárbaros ou de atraso. Ao fazê-lo, esquecemos que os nossos antepassados pensaram, talvez, o mesmo. E esquecemos que estamos a cometer o erro de avaliar o normal de antanho pelos nossos padrões,  Que o que aos nossos olhos parece imoral, patético ou absurdo à luz da ciência e progresso social foi aceitável e norma noutros tempos. E esquecemos que o nosso pináculo contemporâneo de progresso será, no futuro, analisado com a mesma lente de enviesamento crítico com que nós analisamos o passado. Esta vontade expressa de não caracterizar o que nos repulsa sob a perspectiva do barbarismo selvagem transpareceu ao longo de toda a palestra.

O outro ponto que atravessou toda a apresentação foi a continuidade telúrica de mitos e pulsões que se mantém ao longo da história humana, a constância do espírito humano, cujo cerne ético e mítico parece manter-se inalterado ao longo de milénios, É uma ideia que também pervade a ficção de David Soares.

Foi um momento genial. E fica aqui uma nota de respeito: eu dou aulas de hora e meia e sei bem o que é manter a voz e a continuidade de pensamento sem interrepção. Durante todo este tempo um David Soares imparável agarrou-nos e fez-nos pensar. São poucos os oradores que conseguem isso. Julguem por vós próprios: um excerto da palestra foi publicado no YouTube.

Terminou mais um Sustos. Temo o próximo. Será o último. Mas talvez este interesse gerado leve a que se repita a iniciativa futuramente. Os fãs de literatura de FC e Fantástico por cá não tem muitos espaços e momentos de partilha. Entretanto, passem pelo Rascunhos, onde a Cristina Alves deixa as suas observações sobre esta edição do Sustos, ou pela página do evento onde partilham as fotos da sessão. Quanto às fotos, se me virem de relance gostaria de prometer que um dia iria aparecer composto e apresentável nestas sessões. Mas as sextas-feiras costumam ser o longo final de um longo dia que culmina longas semanas. As olheiras são indispensáveis.

sábado, 14 de março de 2015

Sustos às Sextas (III)


Este mês repetiu-se a coincidência simpática desta tertúlia sobre terror decorrer numa sexta-feira 13. Rumar à arquitectura neo-medievalista dos anos cinquenta do século XX no Palácio dos Aciprestes, passar um simpático serão a falar de livros e de terror, e sair de lá sempre com leve depressão cronal. É um ritual, diria.


A opinião era consensual. Este homem invisível que tanto enche o olho, do ilustrador Nuno Duarte, é um dos pontos mais altos da exposição Figuras Clássicas do Terror. A organização do Sustos teve, e muito bem, a ideia de desafiar criadores de BD e ilustradores a recriar ícones do horror clássico. Como já é habitual nestas coisas de desafios aos artistas ligados à BD, o resultado final é de elevado nível, com todos os desenhos a mostrar uma enorme qualidade gráfica. Cá o meu olho foi mais atraído pelo Cthulhu de Jerónimo Rocha que se agigante sobre as naus, mas sou lovecraftiano, por isso muito suspeito.


Menos elogiado pelos visitantes, mas a ilustração de Ana Oliveira foi a que mais me fez sorrir. Esta pobre Medusa incompreendida, desabafando os seus dilemas interiores a um Freud petrificado. Coincidências: nem faz uma semana que revi a cena animada pelo Ray Harryhausen em que Teseu enfrenta a Medusa em Clash of the Titans. E hei de a revisitar para um projecto. Pedagógico, entenda-se.


Finalmente a provar os já icónicos morcegos comestíveis.


Eis João Barreiros, orador convidado desta sessão. Fiel a si próprio, deu-nos uma aula sobre a neurociência do terror recheada de referências à ficção científica. Sai-se sempre de uma conversa com Barreiros com longas listas de livros a descobrir, e esta não foi excepção. Eterno enfant terrible das letras fantásticas portuguesas, foi igual a si próprio. Do meu ponto de vista conseguia-se ver o rosto dos mais incautos e pouco habituados ao estilo de Barreiros a oscilar entre fascínio e um ar de espanto chocado com aquilo que nos contava.


Pelo poder da imaginação, que este novelo de lã se transforme na funesta pata de macaco! Para terminar, leitura dramatizada do conto clássico de horror, tantas vezes referenciado na cultura pop. Momento que teve o seu quê de serão erudito de família. Num evento que conta com António Monteiro, só podia ser algo de profundamente clássico. Nota-se a continuidade da aposta num evento que mistura discussão, troca de experiências, outros olhares e literatura pura. Ou seja, uma tertúlia.

Infelizmente já percebi que saio sempre de lá com uma leve depressão. E porquê, perguntam? Porque depois destas sessões só apetece enrolar-me no sofá com contos de M.R. James e William Hope Hogdson, desempoeirar Lovecraft, ler visceralidades splatterpunk, ir descobrir os autores que se afloram nestas conversas. Infelizmente o tempo anda demasiado sobrecarregado com projectos a que não se pode ou quer dizer que não. Infelizmente sei que não terei tempo de ir visitar estas literaturas sem ser naquele tempo das sextas-feiras assustadoras. Enfim. Estas interrupções provocam depressões cronais. A relatividade e a física quântica ensinam-nos que o tempo é fluído e flexível, mas há tempos em que não se consegue dar por isso. Estas últimas semanas têm sido daquelas em que não chego para as encomendas e o tempo anda escasso para mergulhos no terror clássico. Mas o gostinho está cá...

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Sustos às Sextas (II)


(Imagem descaradamente rapinada da página do facebook do Sustos às Sextas.)

Ouvir uma história de arrepiar na noite profunda, no salão escurecido de um palacete iluminado por luz de velas e o crepitar da lareira que se vai desvanecendo. Foi um momento clássico, que remete para o mais tradicional das ficções arrepiantes. Só podia vir do classicista erudito que é António Monteiro,  representante contemporânea daquele anglicismo eduardiano do horror fantasmagórico das veredas cobertas de névoa que rodeiam mansões decrépitas. Parece crítica, mas não é. O terror não se esgota no gore ou bodyhorror, na angustia psicológica ou monstros lovecraftianos. Também é bom regressar às raízes do terror com momentos de erudição clássica. Tal como a FC, o horror é um género que não esquece a sua memória e continuidade evolutiva. E eu, apesar de ter os pés firmemente assentes no admirável mundo novo digital com um braço encostado às naves espaciais, não deixo de ter um fraquinho pelo clássico conto das casas a ranger na noite vitoriana. As histórias de Carnacki The Ghost Finder e os contos de fantasmas andam na fila de leituras do e-reader (bravo, Projecto Gutenberg).

E aposto que aquele momento em que o conto chega ao pico do terror e a lareira crepita, quebrando o silêncio e a voz, tão cedo não será esquecido pelos presentes.

Finalizou à luz de velas, mas o grosso desta sessão partiu de uma longa conversa de António Monteiro com Rodrigo Guedes de Carvalho e Tiago Guedes, argumentista e um dos realizadores de uma das raridades da cinematografia portuguesa, o filme de terror Coisa Ruim. Rodrigo Guedes de Carvalho é um comunicador nato e numa interessante e divertida conversa falou-nos sobre um filme imensamente bem escrito mas mal realizado (uma clara private joke entre ele e os realizadores, que teve piada da primeira vez que foi preferida mas nem tanto das restantes), das dificuldades de contar histórias em cinema (curiosamente, vim a reflectir sobre coisas que Guedes de Carvalho observou no contexto de formação sobre Plano Nacional de Cinema onde estive no dia seguite a este Sustos), sobre inspirações e todo o processo de filmar uma história onde o sobrenatural é preponderante. Ainda não vi este filme. Na altura em que saiu o factor de conotação com uma celebridade nacional levou-me a desconsiderar o filme como uma brincadeira de alguém com nome estabelecido noutro género que vem ao recreio do terror brincar um bocadinho. Mas do que vi e ouvi nesta sessão dos Sustos fiquei com a curiosidade desperta.

Curiosamente, reparei numa estranha tentativa de descolar o filme do rótulo "terrror", com os entrevistados a cair na tentação de afirmar que não, aquilo no fundo não é um filme de terror, é uma história sobre um casal em desagregação que ao ir viver para o campo descobre que perdeu a chama do amor, e os efeitos do processo de separação sobre o filho adolescente. Pois. Faz lembrar aqueles autores ou críticos que o David Langford tanto gosta de observar que ficam muito felizes e contentes quando a sua obra deixa de ser conotada com essa coisa horrenda que é a ficção de género. Coisas que quando muito têm uns pózinhos de fantástico/terror/ficção científica para apimentar, mas no fundo são obras perfeitamente dentro dos cânones do mainstream. Fazer observações destas, mesmo en passant, no quadro de um encontro de fãs dos géneros do fantástico nas artes, soa a algo estranho. Mas percebe-se. Essas coisas da ficção científica e do terror são coisas para maluquinhos, e o ICA não desperdiça o dinheiro dos contribuintes com coisas para maluquinhos. Os financiamentos vão só para obras de arte comprovadas. Como se nota, pela história de António de Macedo, realizador que por cá fique conotado com géneros fora do cânone não só pode esperar não voltar a ter apoios para filmar como assistir ao esquecimento da sua obra, pese embora esforços pontuais de fãs que tentam lutar contra este estado das coisas.

Esta segunda edição dos Sustos às Sextas começou com a interpretação de duas canções do musical Phantom of the Opera. Se os dotes da pianista são de excelência, eu pessoalmente sou algo imune ao género musical em geral e em particular ao génio de Andrew Lloyd Weber. Mas ouvir musicais que sempre me soaram algo banais faz parte do ambiente de boa parte do público do Sustos às Sextas. Questão de gostos, que não deixam de ser legítimos. Afinal, fãs de culturas de género compreendem melhor que ninguém a sensação terrível de ver as nossas paixões desconsideradas por questões de gosto. Posto isto, a perspectiva de ouvir mais excertos do Fantasma da Opera não me anima muito. Posso sempre chegar atrasado. Ou esperar novo repertório. Não se exige a Fantástica de Berlioz (mas olhem que as bruxas à meia noite condiziriam muito bem com o ambiente do palácio dos Aciprestes), mas certamente que o teatro musical de terror não se esgota em Lloyd Weber.

António Monteiro é o anfitrião de sempre, e o responsável por manter um espírito algo diferente neste género de iniciativas. Tem o seu quê de formal e proto-académico. Em essência é clássico, old school. E porque não o poderia ou deveria ser? A diversidade é essencial à cultura, e o Sustos às Sextas desde cedo me pareceu afirmar-se como evento cultural ambicioso. Notei que a sala tinha mais cadeiras, e todas preenchidas. Esperemos que a tendência se mantenha.

No dia 13 de Março lá estarei novamente. Quer a descobrir ou redescobrir o lado clássico do horror, quer a reencontrar amigos e pessoas que admiro entre os fãs do género. O espírito de tertúlias também vive disso, de ponto de encontro daqueles que no dia a dia raramente se cruzam, excepto em espaços virtuais, e que partilham o gosto por géneros do imaginário. Espero que menos exausto do que nesta sessão, vítima como fui da sublime conjugação de reuniões de conselho de turma, aulas, leccionar sessões de formação e dominar a impressora 3D. Se disser que nestas duas semanas tenho fechado a escola ao início da noite não estou a exagerar. Entre o horror dos demónios e das criaturas que arranham no escuro e o holocausto das reuniões, digamos que mais valem as garras do demo.