quinta-feira, 1 de junho de 2023

História Global de Portugal


Carlos Fiolhais, et al (2020). História Global de Portugal. Lisboa: Temas e Debates.

Uma forma diferente de falar da história de Portugal, não como uma sucessão de factos, personalidades ou narração do que se passou por cá. Neste livro, o foco está no enquadramento da nossa história face aos fluxos globais, desde a pré-história à época contemporânea. Retira o isolamento habitual das abordagens exclusivamente focadas no país, levando-nos a perceber que os nossos factos históricos se inserem em continuidades globais, em tendências abrangentes que também afetaram outros povos. O fluxo é bidirecional, há os momentos em que as tendências externas nos modificaram, e aqueles em que as nossas iniciativas foram iniciadoras, ou precursoras, de movimentos à escala global. A lição fundamental, retirada dos diversos ensiaos que constituem o corpo desta obra erudita, é que não estamos sós, as nossas ações afetam e são afetadas por correntes globais abrangentes.

terça-feira, 30 de maio de 2023

O Computador Criativo


Donald Michie, Rory Johnston (1984). O Computador Criativo. Lisboa: Editorial Presença.

Valerá a pena prestar atenção a uma obra sobre o estado da arte da inteligência artificial e computação criativa escrita nos anos 80 do século XX? O campo da tecnologia caracteriza-se por evoluções vertiginosas, e a ferramenta de ponta de hoje está condenada ao esqucimento obsoletista do amanhã. Isto, claro, se alinharmos pelas estéticas do deslumbramento com a novidade, talvez o mais recorrente tipo de discurso sobre tecnologia e os seus impactos, entre o otimismo sillycon valley (não, não é erro ortográfico) à apologia da IA generativa. 

Este livro surpreende, em duas vertentes. Por um lado, ao falar do estado da arte em 1984 no que respeita à automação e IA, mostra-nos o quanto evoluímos nessas áreas, muito por causa de novas técnicas de IA (aprendizagem mecânica) que colocaram de parte técnicas menos eficiantes, como a programaçáo prévia de decisões e possibilidades. Se bem que esse tipo de desenvolvimento é aboradado no livro, precisamente ao falar da complexidade excessiva desse tipo de abordagens. 

Por outro lado, reparamos que há questóes que são estruturais nestas tecnologias. Questóes sobre impactos sociais, culturais e económicos, que hoje debatemos como se fossem novidade, já o eram antes. É revelador de uma certa miopia cultural das estéticas de deslumbramento tecnológico. No que respeita à questão que me levou a pegar neste livro, a ligação entre computação e criatividade, logo desde início que a posição assumida é a de que há uma ligação forte entre estas áreas, assumindo o computador não como uma mera máquina de manipulação de dados, mas através desta manipulação, um sistema de produção de novo conhecimento. 

Na aplicaçáo ao domínio mais artístico que conotamos com a ideia de criatividade, o livro mostra-nos projetos, à época a ponta de lança da exploração da criatividade digital, que criaram as bases de aplicações que hoje consideramos novidade, deste a inteligência artificial generativa aos metaversos. É refrescante ler sobre projetos de criação artística com sistemas hoje vistos como primitivos de inteligência artificial, a procura por algoritmos de arte generativa, o desenvolvimento de imagens de síntese que veio da origem ao realismo nosso contemporâneo da modelação 3D, ou a criaçao de ambientes virtuais tridimensionais com interação (o que chamaos hoje de realidade virtual ou metaverso). 

Mostra que esta questão da criatividade computacional já levava a trabalho, pesquisa e experimentação desde a segunda metade do século XX. E que a ambiguidade das respostas, a intuição da possibilidade de criatividade a partir do que são sistemas mecânicos, ou programados, mas cujos resultados excedem os limites conceptuais da mecanização ou programação, também já era sentida nos anos 80. Ou seja, a discussão acesa que temos hoje, sobre se as produções da IA Generativa podem ser consideradas criativas ou não, já existiam muito antes dos correntes desenvolvimentos em IA.

Há achados de alfarrabista que são fortuitos, e quando mergulhei na pilha de livros não imaginava que saísse de lá com uma leitura tão provocatória. Lida décadas depois do seu período de máxima relevância, percebe-se como documento histórico, documentando um estado da arte já passado nos domínios da tecnologia.  Mas continua atual nas questões levantadas, mostrando o quão estruturais são quando se reflete nos impactos sociais e culturais da tencnologia computacional.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Auto da Barca do Inferno


João Lameiras, Joana Afonso (2023). Auto da Barca do Inferno. Lisboa: Levoir/RTP. 

Se a coleção Clássicos da Literatura em BD é conhecida pela sua qualidade consistente, como série editorial que leva os grandes livros a um público juvenil, suspeitei que este volume fosse particularmente interessante. Não necessariamente pelo texto. Que me perdoe Gil Vicente, mas este Auto da Barca é sobejamente conhecido, representação moral que deixa o seu público a sonhar com o fim triste no além que terão os grandes da vida que o oprimem no dia a dia. Assistir ao périplo de desencantos de nobres e usurários, alcoviteiras e frades que se julgam a caminho do paraíso mas têm endereço certo nos infernos é um daqueles contos moralistas que, apesar do peso religioso, nos recorda a importância do viver uma vida bem vivida. 

Fiquei à partida curioso pela volta que a dupla de criadores por detrás desta adaptação daria ao texto. João Lameiras, que conheço mais pelo trabalho como investigador na área da BD e livreiro, parece-me ser muito rigoroso nas suas abordagens. E Joana Afonso tem um tipo de traço muito encantador, com um toque de grotesco, que estava curioso de ver a retratar um auto medieval.

O livro não desilude. A adaptação de João Lameiras é rigorosa, cuidada, com umas soluções muito interessantes para transmutar para a rigidez da prancha o fluir teatral. Usar toda uma prancha como vinheta única em que as personagens se vão sobrepondo pareceu-me uma excelente forma de traduzir entre duas linguagens mediáticas diferentes. O traço de Joana Afonso nunca desilude, bem como o seu sentido de composição, há muito para descobrir nas suas vinhetas. Na sua representação, o diabo é deliciosamente demoníaco, o anjo puro, e as personagens são caricaturais num tom que quase toca no grotesco, mas não chega lá (nem tal faria sentido). 

A fasquia estava alta para este livro, e a leitura não desiludiu. A adaptação é sólida e visualmente interessante. E o pormenor final de invocar Böcklin, apesar de algo óbvio para conhecedores, é perfeito para colocar os neurónios dos jovens, público-alvo deste livro, a mexer. Gil Vicente sai muito bem servido pelo trabalho da dupla de autores.

domingo, 28 de maio de 2023

URL

Esta semana, destaca-se o recordar de Fringe, estéticas dos comics Space Age, e as nomeações de Alma Viva. Olha-se para o protocolo ActivityPub, os desafios legais da música gerada por IA, e avatares robóticos. Reflete-se sobre detetives artísticos, iconografia das túlipas, e vestígios de Tartesso.

Ficção Científica e Cultura Pop

Patrick Woodroffe: Estrelas distantes.

DESTAQUES - ENTREVISTAS - Pepedelrey: “A minha BD publicada em Itália é desconhecida do público português”: Interessante entrevista a um dos mais prolíficos, e independentes, criadores portugueses. Inclui alguns comentários caústicos para com o panorama editorial e os núcleos de fãs, que não são de todo descabidos, realmente por cá o conservadorismo estético dita as regras.

Pre-Jetsons Science Fiction Comedy of Dan DeCarlo's Jetta, at Auction: DeCarlo é tavlez o estilista por detrás do look Archie, esse personagem octogenário (desculpem, fãs adolescentes de Riverdale), e de certa forma o Carl Barks da Archie Comics. Mas aqui, o estilismo do ilustrador mostra-se num comic space age que não teve sucesso.

Fringe: Gloriosamente na Periferia: Recordar uma das séries mais interessantes do princípio de século, com a sua aura de mistérios ligados às ideias sobre ciência bizarra. Eram tempos mais inocentes, em que nos podíamos divertir com as ideias de teorias da conspiração, antes de sabermos que uma fatia demasiado elevada das pessoas acredita realmente nessas patranhas.

23 de abril — Dia Mundial do Livro: Algumas sugestões arrepiantes de leitura, para comemorar o amor aos livros.

Estive a Ler: Fundação e Terra, Fundação #5: Apesar dos inevitáveis pormenores datados (mas isso, aplica-se a qualquer criação humana ao longo do tempo), a série clássica de Asimov continua a ser um dos textos imprescindíveis da ficção científica.

Egyptians Protest Netflix’s Black Cleopatra: Os egípcios, e não só. Por muito que seja de louvar a atenção dada a personalidades africanas da história, há uma diferença entre contar as suas histórias, e alterá-las. O caso de Cleópatra é muito pateta, está a ser representa como de etnia africana alguém cujas origens eram gregas, e melhor, nestes tempos em que tanto se fala de descolonizar a cultura, era a representante de uma elite de poder grega que invadiu e ocupou o Egipto. Basta ler um livro de história para saber isto. Por outro lado, não resisto a apontar a ironia das guerras da cultura: queixar-mo-nos de que uma personalidade da cultura mediterrânica está a ser apropriada para relevar a cultura africana. Normalmente, é ao contrário.

Contra a Amazon (Sete Razões / Um Manifesto) – Jorge Carrión: Recordo os tempos em que Amazon surgiu, o quanto nos pareceu excelente a novidade de uma loja global que nos permitia ter acesso a livros que, de outra forma, dificilmente nos chegariam.  E depois, assistimos ao seu crescimento gargantuesco, alicerçado em práticas predatórias que esmagaram as livrarias tradicionais e as lojas online concorrentes.

Is Climate Change Sci-Fi Counter-Productive?: Uma das premissas do Cli-Fi é a sua capacidade de nos despertar a atenção para as consequências das alterações climáticas, mas as estéticas apocalípticas poderão ter o efeito inverso, ao criar uma ideia de apatia perante o inevitável.

Comics writer Grant Morrison is now officially a fictional character in the DC movie universe: Um evento muito adequado para este argumentista que conseguiu transmutar uma certa adição psicadélica numa carreira na cultura pop.

4934) O quebra-cabeças e o calidoscópio: Porque, de facto, há livros em que tudo se encaixa com rigor milimétrico, e outros, são a beleza dos devaneios de estilhaço.

Prémios Sophia 2023: 13 nomeações para «Alma Viva»: E, quaisquer que destas nomeações se traduza em prémio, serão bem merecidas. Este é um dos mais tocantes e surpreendentes filmes portugueses dos últimos tempos.

Tecnologia

Shusei Nagaoka: Futuros simétricos.

Machines, Humans, And The Definition Of Art: Um olhar profundo sobre as ligações entre inteligência artificial e criação artística.

German Photographer Refuses Award for His AI “Photo”: Há duas coisas curiosas nesta história - o aparente laxismo da organização do concurso, que não se deu ao trabalho de validar a origem das imagens (isto, claro, a acreditar na notícia); e a curiosa posição assumida pelo fotógrafo, que ao mesmo tempo que experimenta com IA Generativa como forma de expressão fotográfica, também a parece recusar.

The Tremendous VR and CG Systems—of the 1960s: Uma análise do riquíssimo trabalho de Ivan Sutherland, o precursor de tanto do mundo digital, da realidade virtual ao 3D. Para mim, uma das figuras essenciais da história da computação.

Your Robotic Avatar Is Almost Ready: Diria que o mangá tem a intuição certa - combinar a destreza e capacidades humanas com robótca, ao estilo mecha, é um campo muito promissor para uso regular de robots nos ambientes reais.

Adobe brings Firefly to its video tools: Está claro que o Firefly vai ser um serviço de peso, mais que não seja porque tem a Adobe por detrás. Em breve, poderemos começar a experimentar com geração de vídeo.

Hundreds of years after the first try, we can finally read a Ptolemy text: Da confluência entre tecnologia e humanidades. O uso de instrumentos ópticos permitiu analisar o interior de um palimpsesto, e, com isso, recuperar um tratado de geometria técnica ptolemaico.

Apple va en serio con sus gafas de realidad mixta: prepara una avalancha de apps para su lanzamiento, según Gurman: Curioso. A meta demarcou-se do seu entusiasmo pelos metaversos, mas a Apple mantém o investimento. Vamos ver que tecnologias, e que futuro, terá esta realidade virtual made in cupertino.

Google and Apple Are Reportedly Miffed About All the Porn on Amazon Kindle: Ok, gostos à parte, a questão é que se tratam de livros, não de apps ou jogos, e restringir acessos para lá das necessárias restrições de faixa etária é uma questão mais bicuda do que parece. Porque deveria uma empresa decidir que conteúdo visualizado no meu tablet ou telemóvel?

La historia de la tecnología a largo plazo en una infografía de Max Roser: Este infográfico é poderoso, e mostra-nos como desde meados do século XIX, a aceleração do progresso científico e tecnológico tem sido estonteante.

A Viral AI-Generated Drake Song by ‘Ghostwriter’ Has Millions of Listens: Talvez a surpresa seja o tempo que demorou a acontecer uma destas, pastiches gerados por IA a partir de músicas originais. Mas não terá o mesmo futuro que a IA Generativa nas imagens, já que as editoras musicais, exímias na arte de esmifrar lucros até ao cêntimo, já se precaveram em termos de propriedade intelectual para evitar que aconteça à música o mesmo que aconteceu às imagens.

Responsible AI at Google Research: Technology, AI, Society and Culture: Uma boa decklaração de intenções por parte dos investigadores da Google, mas temo que não seja mesmo mais do que isto, uma intenção de desenvolver aplicações éticas de IA. O registo prático da empresa é bem diferente.

Stability AI announces new open-source large language model: Chats com LLMs para todos? Vamos ver no que dá esta variante de modelo de IA Generativa em fonte aberta, em termos de aplicações e disseminação destas tecnologias.

Snapchat launches AR Lenses powered by generative AI, starting with a new ‘Cosmic Lens’: Sem grande surpresa, a geração automatizada de imagens chegou às redes sociais, aqui aplicada como filtros de realidade aumentada.

Can ActivityPub save the internet?: Será o protocolo descentralizado e interoperativo que permite a diferentes redes sociais comunicar entre si, a nova esperança das redes sociais? Tem muito a seu favor, especialmente o não fechar os utilizadores em redis concebidos para maximizar o lucro. E asssume uma coisa que à partida deveria ser a norma na internet social: porque é que os utilizadores de diferentes redes não podem comunicar diretamente entre si, e têm de ter contas nas várias redes? A resposta a isso é lucros, e isso, tem sido o principal problema das redes.

Chromebooks Are Trash (Literally): Por momentos, parecia que estava a ler sobre os computadores portugueses do escola digital. mas são chromebooks, não insys... e, novamente, se coloca um problema que nem devia existir, o da obsolescência demasiado rápida destes equipamentos.

It Turns Out SpaceX Blew Up Starship on Purpose: Há uma razão de ser por detrás da expressão "this is not rocket science". É porque desenvolver estas tecnologias é um processo de complexos falhanços acumulados até ao sucesso.

Larry Roberts and the Early Blueprint For the Internet: Um olhar para um dos pais da rede que deu origem à Internet.

AI Drake just set an impossible legal trap for Google: Uma interessantíssima reflexão sobre as dores de cabeça legais levantadas pela geração de música por IA. O argumento tradicional anti-pirataria é o de que este tipo de criações é a imitação de um dado artista; mas, na verdade, isso não corresponde ao que os algoritmos realmente fazem. Eles não geram imitações, mas sim algo de novo baseado no estilo com que são treinadas.

The approaching tsunami of addictive AI-created content will overwhelm us: Totalmente, e é uma previsão muito fácil de fazer. Com tantos canais, tanta pressão para gerar conteúdo de desgaste para consumo rápido, os produtores e criadores irão virar-se para ferramentas de automatização da criação de conteúdos. Do meu ponto de vista, o resultado disto será um deserto cultural.

BANG THE KEYS SWIFTLY: Refilices sobre o uso de teclados e as suas implicações pessoais e culturais. Teclados... de máquinas de escrever, não de computadores. É giro ler estes textos mais antigos, e ver neles exatamente o tipo de discurso e as ideias dos que hoje se assustam ou revoltam com a prevalência do digital. É puro plus ça change.

Visual Blocks for ML: Accelerating machine learning prototyping with interactive tools: Um projeto interessante, que ajuda a democratizar o acesso à Inteligencia Artificial. O objetivo é o desenvolver um ambiente de programação visual por blocos para treino e aplicação de algoritmos.

We all contribute to AI — should we get paid for that?: Ah, estas discussões sobre sexualidade angélica. Sim, é o agregar coletivo dos nossos dados que treina os cada vez mais poderoso algoritmos. Não, a compensação que iremos receber por isso vai ser a mesma que recebemos como geradores de conteúdo para as redes sociais.

Sharper 3D Holograms Come Into Focus: Ainda em desenvolvimento, mas passos técnicos para desenvolver ecrãs holográficos que não requeiram uso de óculos.

Modernidade

Vincent Di Fate cover art: Clássicos.

When the Computer Was Not Quite King: Primórdios da arte digital.

The Stories of Art History’s Detectives: Detetives artísticos? Sim, é uma profissão, que desgina aqueles que se dedicam a investigar a origem e o percurso de transações das peças adquiridas pelos museus.

Vermeer’s Revelations: Recordar um dos maiores pintores da história, cujos quadros encantam gerações com a sua mestria e emoções invocadas.

A Brief, Blossoming History of Tulips in Art, From a 17th-Century Dutch Flower Craze to Koons’s Controversial Bouquet: Tons de primavera, e o deslumbre das túlipas, ao longo da história de arte.

Archaeologists Uncover the Ancient Gods of a Lost Civilization in Stunning Find: Um vislumbre sobre os mistérios do nosso passado ibérico, com esta desconberta que aprofunda o que sabemos sobre a civilização de Tartesso.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

O Alienista


Machado de Assis (2014). O Alienista. Porto: Porto Editora.

Quando o médico de uma pequena cidade do interior brasileiro consegue convencer a câmara local a estabelecer um asilo para lunáticos, os pobres habitantes da terra mal sabem os que os espera. No seu afã científico de catalogar e curar os males de mente dos seus vizinhos, o médico lança-se numa onda de internamentos desenfreados que até leva a uma revolta. Nada se resolve, porque tudo pode ser mal da cabeça. mas os ânimos serenam quando o médico altera a sua estratégia, soltando os que considerava loucos do asilo, mas passando a encerrar as pessoas sérias e honestas, porque de facto, neste mundo, quem é sério e honesto não pode estar bom da cabeça, correto?

O corolário é o alienista acabar a pensar que ele próprio sofre de transtornos, e internar-se para se estudar e tentar curar a si próprio. Entretanto, os turbilhões sociais que as suas ações provocam numa cidade de província que quer ser vista como progressita, e cujos habitantes cedem às clássicas tentações do poder e importância, vão acalmando.

Crítica social mordaz, este pequeno livro é um delicioso estudo da vaidade humana, entre um proto-psicólogo convencido que é capaz de tratar os males do mundo e uma cidade cujos habitantes, em busca de poder, prestígio, ou para não perder a face, acabam por mergulhar numa forma muito própria de loucura.

terça-feira, 23 de maio de 2023

A Promessa


Bernardo Santareno (1973). A Promessa. Lisboa: Círculo de Leitores.

Pobreza, superstição e luxúria cruzam-se neste texto demolidor, justamente considerado uma das melhores peças de teatro do neorealismo português. O cenário, são as vidas duras dos pescadores, que arriscam a  vida por um magro sustento. O enredo envolve as frustrações da jovem mulher de um pescador, cujo casamento se encontra por consumar devido a uma promessa que este fez, numa noite de tempestade, prometendo  a castidade pela sobrevivência do pai. Quando a família abriga um contrabandista ferido num tiroteio com a guarda, estes sentimentos entrarão em ebulição. Frustração, paixão, ciúmes e o peso das tradições e superstições conservadoras colidem para um final sangrento.

Cruzei-me com este texto ao ver o magnífico filme do mesmo nome realizado por António de Macedo, a sua estética não me saiu da mente ao ler o texto. A personagem forte, confusa, dividida entre as pulsões da sua carne, o amor que sente, e o peso das convenções que é Maria do Mar é uma visão de mulher acorrentada. O final do texto é enigmático, com três velhas mulheres de pescadores a falar entre si, como se de parcas ou erínias se tratassem.

domingo, 21 de maio de 2023

URL

Para esta semana, destacam-se as Edisonnades, as questões de silenciamento literário, e um dos grandes marcos de maturidade narrativa nos comics. Fala-se de conjugar múltiplos empregos recorrendo à IA Generativa, os desafios da Relativity Space, e zonas de vida computacional. Olha-se para privilégios de beleza animal, a capacidade de separar a arte da personalidade do artista, e olhares para o lado incómodo do nosso passado.

Ficção Científica e Cultura Pop

NASA, 1971: Futuros no espaço.

4931) A Invenção de Morel: Confesso que nunca tinha visto este livro de Bioy Casares sob este prisma, o da imortalidade. Não total, mas sim parcial, pela preservação de memórias e momentos. Nem sob a visão de elitismo, de buscas pela preservação de memória que beneficiam aqueles que têm acesso às tecnologias (ou à cultura, como no brilhante exemplo de James), remetendo tudo o resto para esquecimento.

The Scientific Romances of Garrett P. Serviss: Há uma razão para este prolífico autor dos primórdios da ficção científica não ombrear com Wells ou Verne, é que as suas histórias eram francamente medíocres. Mas, para os fãs que queiram aprofundar os seus conhecimentos sobre o género, é um nome inescapável, graças às suas edisonades, um género de proto-FC americano em que Edison era a estrela, diria que uma comparação contemporânea seria imaginar toda uma vertente de FC em que Elon Musk seria o herói do espaço e tecnologia (o que até é um vício nalguns sectores de discussão sobre tecnologia, onde os fanboys tentam gritar mais alto que a lógica e bom senso).

O Deus mercado rejeitou o homem branco: A partir da polémica lançada por um daqueles escritores do nosso mainstream convencionalista conservador que eu francamente não me dou ao trabalho de ler, uma análise fria e metódica das reais razões que levam os livros aos leitores: não é a qualidade literária, o potencial impacto cultural, mas sim a possibilidade do lucro. Quando as editoras são essencialmente meros departamentos de conglomerados empresariais, é a folha de caixa que dita as prioridades. E isto tem dois gumes: desenganem-se, zelotas do hiperprogressismo que se sentem confortáveis com a alteração do conteúdo de livros em nome da não ofensa de sensibilidades: isso não acontece porque as editoras partilham a vossa visão de progresso, mas sim porque, para elas, vocês são um nicho de mercado para explorar.

(Re)Assistindo: Anthony Perkins em Psicose: Um dos mais subversivos filmes de Hitchcok, e o iniciador de uma série clássica de slashers.

ESPECIAL - EVENTOS - Festival Contacto 2023: O programa deste festival está muito interessante e reflete a sua maturação, espero poder visitar pelo menos no segundo dia.

New Fall of X Books Bring Finality and Weirdness to the Krakoa Komics: Aproxima-se o fim de um dos mais radicais arcos narrativos dos comics Marvel, que transformou profundamente os icónicos X-Men e lhes deu um papel central no universo Marvel, com a linha narrativa da ilha viva de Krakoa (um dos primeiros mutantes, e das primeiras ameaças que combateram no passado) a tornar-se um abrigo global para os mutantes, e uma nação independente. Um arco que deu azo a muitas vinhetas, entre aventuras cósmico-futuristas, space opera (com os New Mutants), ou geopolítica (praticamente toda a série de raiz dos X-Men). Resta saber como termina a história.

When did comics shift to focusing on visual storytelling?: Um vídeo que nos recorda uma das mais influentes e icónicas histórias dos comics clássicos, uma cujo arrojo na forma como abordou a gramática visual quebrou a tradição mecânica do desenho para comics, e lançou o lado mais experimental que fez amadurecer o género. Paradoxalmente, o desenhador que lançou esta revolução foi pouco reconhecido e é quase obscuro, excepto para quem aprecia a história da banda desenhada.

Tecnologia

Karel Thole: Vastidões.

Italy gives OpenAI initial to-do list for lifting ChatGPT suspension order: A atitude do regulador italiano tem sido apontada como um exemplo de obscurantismo, de querer meter um travão ao desenvolvimento da inteligência artificial. Mas, como mostra a sua lista de regras a cumprir para levantar o banimento ao ChatGPT, está apenas a tentar que estes serviços cumpram as leis sobre privacidade e dados pessoais, bem como sejam mais transparentes na forma como usam os dados no treino dos algoritmos. Diria que o regulador italiano tem razão, e está a fazer um trabalho admirável. Muito se discute que os serviços de IA necessitam de mais transparência e responsabilização, mas atitudes laissez faire apenas mantém o corrente estado das coisas, que está a favor das empresas, e não dos cidadãos. No fundo, o que o regulador italiano está a mostrar é que apesar de todo o hype à volta da IA Generativa, as empresas que a promovem e lucram com ela não estão acima da lei.

Elon Musk también está creando su propio ChatGPT. Lo sabemos porque acaba de comprar 10.000 GPU carísimas: Depois de ver o desastre que é o twitter by elon, não deixo de ficar a pensar que um LLM desenvolvido a expensas da fortuna do space karen será tipo um chatgpt que responde a todas as questões com frases elogiosas a musk.

Grifters Using ChatGPT to Work Multiple Full-Time Jobs at Once: É um fenómeno que não surpreende, e sublinha o caráter automatizável de muitas profissões de colarinho branco. Se bem que é errado pensar em automatização total. O que estes super-trabalhadores que conseguem ter múltiplos empregos fazem, é otimizar os seus processos de trabalho com ferramentas de IA Generativa. 

Microsoft se prepara para cambiar una función histórica de Windows (y esta decisión puede traer cola): Faz todo o sentido, atualizar a clássica tecla print screen para ativar nativamente a ferramenta de corte do Windows. 

OpenAI looks beyond diffusion with ‘consistency’-based image generator: E se fosse possível usar IA Generativa mais rápida, e em qualquer dispositivo? É essa a promessa desta nova técnica, que acelera o tempo que demora um algoritmo de IA Generativa a gerar conteúdo a partir de um prompt.

Relativity Space ya tiene una idea de las causas de que su primer cohete Terran 1 no entrara en órbita… y dice que no lo lanzará nunca más: O desenvolvimento de tecnologias ligadas ao espaço é uma tarefa de imensa complexidade. E, no caso das tecnologias espaciais impressas em 3D desta empresa, as falhas estão a levar a trabalhar já no passo seguinte, com um projeto mais ambicioso.

Meet the Robotics Company Beloved by Generative Artists for Transforming Their Digital Art Into Physical Reality: Para aqueles criadores de arte digital e generativa para quem uma simples plotter DIY ou Axidraw não são o suficiente, há uma empresa que se dedica a desenvolver soluções específicas de robots pintores.

Meet the World’s Least Ambitious AI: Um algoritmo simples, pensado para falhar perante a interação com humanos, e com isso manter o seu interesse no xadrez, mostra como as melhores ferramentas de IA nem sempre são as que fazem maravilhas.

Scientists Propose Looking for Life in Galaxy's ‘Computational Zones’: A proposta é interessante, alargar o conceito de vida observável à computação, mas suspeito que haja aqui uma ação metafórica. Dos modelos do universo como mecanismo de relógio ou máquina, passámos à metáfora computacional para descrever o universo que nos rodeia.

Google Tells AI Agents to Behave Like 'Believable Humans' to Create 'Artificial Society': Usar IA Generativa para simular sociedades. Para além do aspeto de quasi-FC distópica, há uma utilidade a curto prazo, a de desenvolver tecnologias de NPC generativos para jogos.

The Dawn of Mediocre Computing: Seria fácil ler este ensaio na perspectiva de uma aurea mediocritas cultural trazida pelos usos da IA Generativa, com a sua promessa de automatizar a criação de textos, imagens e vídeos. Mas estamos a falar de uma reflexão de Venkatesh Rao, um dos mais curiosos pensadores oblíquos sobre tecnologia, o que significa que vai muito mais longe, e nos recorda que é a mediocridade que sustenta o nosso dia a dia. Não no sentido pejorativo de medíocre, mas assumindo a impossibilidade de excelência constante nos sistemas que usamos e dependemos, ou como dizemos de forma vernacular, o ótimo é inimigo do bom, porque no dia a dia, precisamos de tecnologias que sejam suficientemente boas para o uso que queremos, e não das suas versões mais excelentes.

Reverse centaurs and the failure of AI: Como sempre, Doctorow a ser certeiro. Chamamos sistemas centauro às automatizações e algoritmos de IA que melhoram o desempenho humano. Mas, na proletarização destes sistemas, existe o seu oposto - algoritmos e sistemas que visam extrair o máximo possível de labor humano, mecanizando-o para lá de todos os limites. A forma da Amazon gerir o trabalho nos seus armazéns é, talvez, o corolário dos centauros inversos.

“A really big deal”—Dolly is a free, open source, ChatGPT-style AI model: A disponibilização destes modelos em fonte aberta é uma excelente ideia, quer para o democratizar do acesso a esta tecnologia, quer para a tornar mais transparente.

Tinkercad Gets a Move On: Tenho trabalhado pouco com o Tinkercad, neste momento deixei mais de lado a impressão 3D na educação para me focar na programação e robótica (com um olhar artístico) com os meus alunos. Mas esta nova função, a de permitir simulação física, parece-me muito prometedora.

Time to rethink the phone call: Confesso, sou daqueles que odeia ser interrompido pelo toque do telefone, ao ponto de considerar isso ofensivo. Longe vão os tempos em que o ring ring do telefone fixo eram uma excitação.

Relive the Glory Days of Sun Workstations: Para quem gosta de retrocomputação, eis um projeto divertido: correr o sistema operativo das workstations dos anos 80 num emulador.

"Dos personas hacen el trabajo que antes hacían diez": cómo la IA está afectando a los ilustradores en China: Podemos olhar para esta história sob o ponto de vista da ameaça que as máquinas representam para a humanidade. Mas a realidade é mais prosaica. O trabalho que estes ilustradores faziam estava longe de ser criativo, tratava-se de produzir conteúdos visuais a metro para produtos digitais chapa 5, aquele eterno ruminar das iconografias da ficção científica e fantasia para alimentar o lado visual daqueles jogos clones uns dos outros que vão aparecendo nas app stores em infinda torrente. É banal, rotinável e de baixo custo, não representa nada de novo, é a cópia banalizada em infindas variações do que é essencialmente o mesmo. Ou seja, aquilo que a IA generativa mostra que faz muito, muito bem.

Has The Metaverse Been Put On Hold?: Sim, sem grandes surpresas. Quando há ano e meio grassava o deslumbre com os metaversos e o optimismo com a revolução da realidade virtual, quem se atrevia a criticar, apontando que a realidade virtual já passou por picos de hype anteriores que não deram na tão desejada massificação da tecnologia, era logo apontado como velho do restelo. Agora, todo este campo, da realidade virtual, mundos virtuais e metaversos, volta a ficar em banho maria. As causas são sempre as mesmas: a tecnologia que os sustenta continua pouco prática (francamente, acham mesmo que é boa ideia enfiar um HMD para trabalhar no excel, como se viu nalgumas das propostas mais corporate dystopia da Meta?); e o interesse que desperta continua a manter-se nalguns nichos específicos, como os jogos ou a educação. A queda abrupta deste terceiro pico da Realidade Virtual foi ajuda pela corrente explosão de deslumbramento com as capacidades (ainda rudimentares, mas não se pode dizer isso) da IA Generativa.

Modernidade

Outguessing The Red Demon: Ou, um meio de transporte capaz de transformar o condutor em carne picada.

Do some animals have pretty privilege?: Bem, não seríamos tão apaixonados pelos nossos cães e gatos se não fosse pela sua beleza aos nossos olhos, certo? 

El primer buque "portadrones" del mundo es la nueva joya del ejército turco (y se ha diseñado en España): Note-se aqui a confluência de tecnologia com geoestratégia. O que a Turquia realmente queria era um porta-aviões equipado com F-35, mas o arrefecimento das relações com os EUA ditou o seu afastamento do programa. Por isso, transformou o projeto num porta-drones, equipando o navio com aeronaves não tripuladas desenvolvidas por empresas turcas (e, como tem sido demonstrado na Ucrânia, mas também noutros conflitos, são de baixo custo mas tão capazes como drones desenvolvidos por empresas ocidentais).

It’s Okay to Like Good Art by Bad People: Será possível conciliar o respeito e admiração pela obra de um criador, com as falhas de personalidade, defeitos e eventuais crimes da pessoa? A resposta negativa típica da cultura de cancelamento é de uma enorme preguiça intelectual, mas a simples aceitação também não é suficiente, há que incorporar visões críticas sobre a vida ao admirar a obra, e ter a capacidade de olhar mais além, para o espírito da obra de arte em si, em vez de manter o foco nas falhas do criador. Claro, isto não é um processo fácil, muito em especial se o tipo de comportamentos censuráveis dos criadores despertam traumas ou revulsões nos espectadores, saber que as musas de Gauguin eram menores de idade ou que Woody Allen teve relações questionáveis com filhas adotivas, ou que Leni Riefenstahl não são temas fáceis de digerir.

Madrid: o que visitar numa escapadinha de dois dias à capital do ‘país vizinho’: É um cliché, eu sei, mas sabe sempre bem dar um saltinho ao centro de Castela. Madrid tem os seus encantos, e embora os meus não espelhem os do artigo (mas confesso, os churros em San Ginés são um dos meus prazeres culposos), sempre dão uma saudade da cidade.

O tapete que revela o maior crime de Portugal: Confesso-me curioso por ver este documentário, por se atrever a abordar uma das heranças incómodas da nossa história. Não precisamos de falsos mea culpas, mas também não podemos descartar esta questão com o menorizar do esclavagismo como um mero elemento económico do triângulo comercial atlântico. E sim, os portugueses não foram os únicos a explorar o esclavagismo, nem o africano é caso único na história, a posse de seres humanos sempre foi uma constante em muitas civilizações. Mas, felizmente, evoluímos, e saber olhar para o passado é um sinal de maturidade.

Of Course This Is How the Intelligence Leak Happened: Confesso alguma dificuldade em acreditar nas ações de um pós-adolescente à procura da validação dos amigos virtuais de um canal de chat como a origem do vazamento de segredos militares americanos que surpreendeu o mundo. Claro, a banalidade da explicação torna-a muito plausível, e nestas coisas, por vezes o simples é o que realmente é. Mas estamos a falar de documentos militares descobertos a meio de uma guerra. Pode ter sido o que nos estão a dizer que foi, um rapaz idiota com acesso ao que não devia, mas também pode ter sido, ou melhor, estar a ser, uma operação de desinformação. Reparem que os ucranianos têm todo o interesse em mostrar informações secretas que os mostrem como vulneráveis, como forma de justificar o crescimento do apoio militar à Ucrânia. E, também, não é de por de parte a ideia de que os próprios serviços americanos se serviram deste estratagema como operação de desinformação, misturando informações verdadeiras com falsas para confundir os decisores russos (especialmente porque se sabe que estão a empurrar os ucranianos para uma ofensiva de primavera que estes estão relutantes em fazer). Não são estratagemas novos, a história dos serviços secretos está cheia destes estratagemas. O rapaz agora preso pode ter sido, realmente, um idiota; ou talvez um idiota útil, sacrificado como bode expiatório para cobrir falhas de segurança americana; ou talvez uma peça no jogo da desinformação. Notem que coloco estas ideias no campo do talvez, é interessante especular, mas há que evitar o risco de cair em teorias da conspiração.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Dead Inside


Chandler Morrison (2015). Dead Inside. Createspace.

De vez em quando, presto atenção às sugestões literárias de booktokers. É uma boa forma de descobrir novidades, ainda um pouco livre da pressão editorial que é normal noutras redes sociais. E, também, uma forma de perceber novas tendências e estéticas nos domínios do fantástico. É curioso ver a divulgação de novos autores vindos de pequenas editoras e independentes. O que não significa que sejam leituras excelentes, em boa parte dos casos, e não vem daí mal disso. 

Este é um desses casos, um livro que pretende ser chocante e visceral, mas pela forma clínica como se compraz na descrição de situações escabrosas, mal consegue passar do voyeurismo grand guignol. Livros que pretendem ser negros mas se desenrolam de forma luminosa raramente atingem o que almejam. O que não signifique que não deixe de ser divertido lê-los, e desfrutar das suas tentativas de perversidade.

A história centra-se no encontro implausível entre um homem e uma mulher. Ele, é necrófilo e aproveita-se da sua posição como vigilante nocturno de um hospital para dar largas aos seus gostos. Ela, médica, tem como hábito o devorar em cru de fetos humanos abortados. A soma destas duas inconsistências é, como não poderia deixar de ser, um mergulho em perversidades, e essencialmente um confronto entre duas personalidades que estão totalmente à parte de normativos sociais. Mas, não passa daqui. 

Comparo este livro com American Psycho de Ellis, onde a descrição clínica de sevícias de psicopara justaposta à vacuidade do estilo de vida yuppie funciona como crítica corrosiva aos excessos do capitalismo. Aqui, é apenas uma história de violência algo gratuita, escrita para deleite com a negritude. Não deixa de ser uma leitura divertida e bem estruturada, mas não consegue ser tão tenebrosa quanto pretende ser.

terça-feira, 16 de maio de 2023

The Girl Next Door


Jack Ketchum (2005). The Girl Next Door. Nova Iorque: Leisure Books.

Quando duas irmãs recentemente orfãs vão viver para casa da tia, numa vilória americana, vão catalisar patologias desviantes, que se irão traduzir numa espiral descendente de extrema violência. Acolhidas por uma mulher problemática com filhos incapazes de distinguir o bem do mal, a beleza de uma das raparigas vai despertar a ira da tia envelhecida, que a transmuta num progressivo agravar de agressividade sexualizada, que descamba em tortura, violência e assassínio. 

Mas o mais arrepiante são as reações do grupo de rapazes, amigos de infância, que se reúne à volta dos filhos da mulher. Assumem uma aceitação da violência, cedendo ao fascíno do poder, da capacidade de dominar por completo outro ser humano, de o manipular a seu bel prazer. Tornam-se cúmplices, e mesmo que sintam que  o que fazem é errado, envolvem-se nas sevícias violentas.

O livro é um mergulho na escuridão da violência, inspirado num caso real. Somos levados por um narrador ambivalente, inicialmente fascinado pela embriaguez de poder, mas que acaba por se arrepender e, no processo, tornar-se vítima. A escrita é límpida e bem ritmada, e é esse o problema do livro. Pretende ser um mergulho nas trevas, com um toque grand guignol, um estudo sobre a perversidade humana. Mas desenrola-se de forma previsível, com a clareza simplista de um policial procedimental, com algumas cenas de violência para estímulo da imaginação do leitor.

domingo, 14 de maio de 2023

URL

Esta semana, o destaque vai para cultura pop gerada por algoritmos, a história do clássico Tetris, e sugestões de leitura. Fala-se sobre o cruzamento de digitalização 3D e realidade aumentada, a aparente impossibilidade de terminar sessão em serviços digitais, e uma nova rede social no horizonte. Olha-se para a física do arco-íris, o legado de Nam June Paik, e caravelas foreiras.

Ficção Científica e Cultura Pop


[no title]: Computação portátil.

How Tetris Was Born: Um olhar para a origem daquele que é talvez o jogo mais influente, e jogado, de todos os tempos.

‘The Super Mario Bros. Movie’ Reviews Roundup: Critics Consensus Says Illumination’s Latest Looks Good, But Is Narratively Shallow: Deixa-me ver se percebi. Estão a observar que um filme feito a partir de um jogo de computador que se baseia em meter personagens a correr para apanhar moedas, fugir de inimigos e salvar princesas é... uma narrativa pouco profunda? É Super Mario, não Dostoievsky...

We Settled for Catan: Fico com a sensação que o cronista da Atlantic não gosta muito de tabletop games, e muito menos de referências â ficção científica e fantástico. Apesar destas bizarrias, acaba por ser uma elegia ao trabalho do criador deste jogo, bem como um elogio ao mesmo.

David Lynch says he'll "never watch" Denis Villeneuve's Dune movies: É trauma, diria. O seu Dune sempre foi injustamente vilipendiado, em grande parte porque os espectadores de ficção científica cinematográfica estão habituados a ação acéfala e efeitos especiais (pensemos Star Wars, o melhor exemplo disso). O seu Dune era bizarro, surreal, inquietante, pouco dado a cenas de ação épica. E, pior de tudo, un filme de intelecto. Isso, num público habituado ao menor denominador comum, leva à ostracização imediata.

NOVIDADES - Lore Olympus: O curioso, para mim cujo cérebro não consegue parar de ver conexões, é que este lançamento tenha sido anunciado na páscoa. É que o mito de Hades e Perséfone simboliza, entre outras coisas, o ritmo das estações e o renascimento primaveril depois da desolação do inverno, que é fundamentalmente o que o mito judaico-cristão pascal também celebra.

Guerra do Peloponeso, 431 a.C. a 404 a.C.: Confesso, também tenho cada vez mais o fascínio de ir descobrir estes textos originais, não por razões académicas mas pelo puro prazer literário.

AI-Created Pop Culture Is Already Among Us: De certa forma, a IA Generativa é o sonho húmido de gestores e editores preguiçosos e gananciosos, que querem enriquecer com dinheiro fácil. Sistemas que automatizam a produção e distribuição de conteúdos, sem requerer investimento em criadores humanos.

The Best Psychological Thrillers, recommended by J.S. Monroe: Sugestões de leitura empolgande, no domínio do suspense psicológico.

Tecnologia

Angus McKie: Máquinas pensantes.

Build 3D scanning into any Unity application with Niantic Scanning Framework: Uma proposta intrigante, que promete a incorporação de geração 3D com fotogrametria dentro de apps móveis desenvolvidas em Unity. Suspeito que há aqui espaço para desenvolvimento de jogos em realidade aumentada, ou outras aplicações de AR.

New Zealand Spaceplane Performs First Rocket-Powered Flight, Achieving Major Milestone: Um projeto que desconhecia, de desenvolvimento de um orbitador ao estilo space shuttle, vindo da Nova Zelândia.

The Woman Going Viral for Serenading While 'Stuck' Places Is Staging It for the Algorithm: A sério que isso é uma surpresa, que aqueles vídeos virais supostamente informais e obra do acaso que vemos nas redes sociais são, na realidade, pensados, estruturados e realizados com cuidada produção?

Meta Releases New AI-Based Photo Segmentation Tool to Everybody: A Meta junta-se ao desenvolvimento de algoritmos de IA Generativa, e o curioso é que estão a libertar estas ferramentas em open source. A ferramenta em si é impressionante, permite seleção automática de áreas de uma imagem.

Meta wants to use generative AI to create ads: Geração automática por inteligência artificial de anúncios para distribuição a categorias demográficas geridas por inteligência artificial. Só falta meter aqui uns bots para ver os anúncios e comprar os produtos, e teríamos aqui um ciclo de economia totalmente automática.

AI Chatbots Don’t Care About Your Social Norms: O problema aqui não é tanto dos algoritmos, recordemos que (simplificando algo complexo), o que geram é o resultado de análise estatística. O problema tem a ver com a nossa tendência de antropomorfizar tudo o que tenha aspeto de vivo e consciente, mesmo que não o seja, o que nos leva a suspender visões críticas e a assumir confiança plena nos algoritmos.

The robots are already here: Menos visíveis do que gostaríamos, mas já elementos fundamentais das infraestruturas na industria e serviços, ou seja, essenciais à nossa economia.

ChatGPT is going to change education, not destroy it: Certeiro. Os rumores sobre o potencial negativo desta ferramenta são muito exagerados. Em parte, porque mostram uma certa acefalia rotinada nos sistemas educativos. Como alunos, ou formandos, já muitas vezes tivemos de entregar trabalhos de mera ruminância teórica, sem qualquer significado exceto os de cumprir as tarefas exigidas na cadeira, disciplina ou formação. E, para esses, sejamos francos: não os automatizar com ferramentas tipo ChatGPT é que é idiota (sim, já fiz, e voltarei a fazer, peça-me um texto acéfalo e sem significado e eu recuso-me a perder tempo a elaborá-lo à maneira antiga). Dito isto, é preciso sublinhar que o potencial do ChatGPT não está na sua capacidade para fazer batota (até porque a informação que gera não é totalmente fiável), mas sim no potencial para criar bases de trabalho a serem melhoradas com o esforço dos alunos.

The impossibility of logging off: Um dos mais recorrentes dark patterns da vida digital, a forma como as empresas nos querem manter sempre ligados (e, com isso, a consumir ou a recolher os nossos dados). E o estratagema é diabolicamente simples: basta dificultar e ocultar as opções de terminar a sessão na app ou serviço. Isto não é um bug, ou erro técnico. É uma decisão consciente dos gestores destas empresas.

Amazon Shut Down DPReview. The Community Is Saving It: É sempre preocupante quando uma empresa gigante adquire um serviço independente com uma comunidade aberta massiva. Este passa a estar sujeito às prioridades da empresa, o que significa que a sua estabilidade futura não está assegurada. Aqui, a solução esteve na própria comunidade, que recriou o site. Noutros serviços, como o Bookdepository, também encerrado pela Amazon, não há alternativa exceto o redil do senhor Bezos.

Reminder: Digital Culture You Buy Isn’t “Bought.” It’s Only Licensed (That’s A Huge Difference): É, é isto. Músicas que desaparecem da nossa biblioteca musical porque os acordos de agenciamento e licenciamento entre editoras musicais e plataformas mudam. Ou livros cujas palavras se alteram porque os gestores das editoras não querem chatices com o extremismo woke e contratam editores de sensibilidade para modificar frases e expressões potencialmente sensíveis. Com o digital, a cultura deixou de ser um bem, e passou a ser um serviço.

What is generative AI, what are foundation models, and why do they matter?: Uma pequena mas conclusiva introdução aos conceitos elementares da IA Generativa, e aos seus modelos fundamentais generalistas e personalizáveis, que se têm revelado tão flexíveis nas suas aplicações face aos modelos dedicados.

With latest hit Lemon8, ByteDance again learns from the China playbook: Começa a desenhar-se uma nova rede social no horizonte, vinda da criadora do TikTok, e tal como este, inspirada numa rede de sucesso chinesa.

Adobe Firefly intentó competir con Midjourney: salió mal (pero por una buena razón): Duas dicas: dêem-lhes tempo (claramente não se recordam das primeiras versões do Midjourney), e sim, de facto a base de treino do Firefly está pensada de raiz para evitar os problemas ligados aos direitos de autor, algo que a Adobe se pode permitir fazer recorrendo à sua biblioteca de conteúdos stock, livres de direitos de autor. Já experimentei a Firefly, estou fã, especialmente porque os seus resultados são mais enviesados para o desenho artístico do que o progressivo hiperrealismo do Midjourney.

Raspberry Pi rolls out a code editor for young people: Excelente projeto, nunca são demais as plataformas que estimulam à aprendizagem da programação.

Delivering a quantum future: Se a IA Generativa é o foco das atenções, outra tecnologia digital disruptiva está em crescendo, com investimentos cada vez maiores na computação quântica.

E Ink's New Color E-Paper Looks Almost as Good as LCD Screens: Mas não esperem que estes novos ecrãs multicoloridos cheguem aos e-readers, estão pensados para outros usos, como o de cartazes digitais. Onde fazem todo o sentido por serem menos caros e mais poupados em consumo de electricidade do que os ecrãs tradicionais.

Mark Zuckerberg Abandons Metaverse as Shiny New Toy Appears: Recordam-se quando há poucos meses atrás se falava das realidades virtuais e metaversos como algo de inabalável, que desta vez tinha vindo mesmo para ficar? Como esperava, o fim desta nova tentativa de popularização da RV terminou, apenas não se esperava que fosse tão súbito. 

Where’s the AI Culture War?: Pessoalmente, temo o momento em que os políticos, especialmente os mais fascizóides, se intrometam nas questões ligadas à IA. A boçalidade e pura ignorância relativas à tecnologia evidenciada pela esmagadora maioria dos políticos é notória. E, dados os baixos escrúpulos desta classe, não surpreenderá se usarem a IA para caçarem votos apelando aos sentimentos mais baixos da turbas.

GPT-4: 31 trucos, funciones y cosas que le puedes pedir para exprimir al máximo la inteligencia artificial: Algumas ideias para explorar o GPT-4.

Ya hay una web que promete distinguir las imágenes reales de las generadas por IA. Obviamente, tiene truco: É quase uma missão impossível, hoje, o distinguir uma imagem real de uma criada por IA Generativa.

Quem controlar os Modelos de Linguagem, como o ChatGPT, controla a política: Os algoritmos não são isentos, e quem os implementa tem as suas agendas. Dada a sua pervasividade e facilidade com que nos entram pelos olhos dentro, não é difícil vê-los como ferramentas de controle de opinião. 

China wants homegrown AI to reflect the core values of socialism: Diria que o modelo chinês de IA já reflete muito os seus valores, como se pode comprovar pela estreita relação entre as empresas chinesas que desenvolvem tecnologias de IA e a repressão da minoria Uigur. 

Modernidade

La Planète sauvage, 1973: Surrealismos fantasistas.

Rainbows are actually full circles. A physicist explains: Um olhar detalhado sobre a física do arco-íris, e a razão pela qual não há potes de ouro nas suas extremidades, os arco-irís são círculos, mas a nossa capacidade de os ver assim depende do nosso ponto de vista. Na maioria das vezes, há um planeta que se mete no meio do círculo e a nossa visão.

How (Not) To Interpret Far-Right Symbols: Códigos próprios, mas também a apropriação e descontextualização de símbolos com outras heranças culturais. Uma análise à forma como os trolls de extrema direita se apropriam de símbolos, ou criam os seus códigos específicos.

Remember Damien Hirst’s Spin Paintings? Now You And AI Can Make One Of Your Own: Mais interessante do que a notícia sobre o uso de NFTs por parte deste artista, é dispormos de um brinquedo que permite criar imagens de arte generativa.

TV Experts in 1944 Wondered If Anyone Would Watch During the Daytime: E agora, neste tempo que é o futuro de 1944, sabemos que a resposta é sim. Também sabemos que os telespectadores deste segmento são largamente desempregados ou reformados, e os canais televisivos competem entre si para lhes oferecer programas que são uma verdadeira hecatombe para os neurónio, cheios de inanidades, venda de produtos banha da cobra, e aposta num empolamento de culturas do medo, com comentadores prontos a promover uma imagem social de crimes violentos, tudo para assustar os velhotes e os manter agarrados ao ecrã. É medonha, a televisão generalista durante o dia.

The Anarchic Spirit of Nam June Paik: Olhar para um artista algo iconoclasta, e um dos pioneiros da arte digital, com todo o trabalho que desenvolveu com televisores, vídeo e manipulação de tubos de raios catódicos.

How an AI drawing program shook the art world in the 1970s: É sempre interessante recordar que os primórdios da arte com inteligência artificial se deram nos anos 70, com o trabalho do pintor Harold Cohen a desenvolver algoritmos de desenho e pintura.

Interoperable Europe act [EU Legislation in Progress]: Um conceito interessante, que faz todo o sentido num quadro de integração europeia. Não se trata de uniformizar os diferentes países, mas sim de criar mecanismos de interoperabilidade para garantir um melhor acesso dos cidadãos aos serviços estatais em qualquer ponto da UE.

Estas são as “Caravelas Foreiras” de Lisboa: o que são e representam?: Um pormenor arquitetónico que os passeantes com olhar mais meticuloso reparam na cidade, as representações de caravelas que surgem em alguns edifícios. Não se sabe muito bem o que representam, podendo estar ligadas aos marinheiros.

There’s a Sexual Abuse Scandal Brewing in the World of Competitive Cheerleading: Uma indústria que faz da exploração dos corpos das jovens a sua pedra basilar, povoada por abusadores sexuais que se valem das suas posições de poder para forçar adolescentes? Porque é que isso não é nada surpreendente? Se repararem bem, é o ponto comum nos recentes escândalos sobre abusos sexuais (sobre menores e não só), entre os metoo e os padres católicos abusadores - homens em posição de poder, cultural, espiritual ou económico, que abusam do mesmo para fins sexuais.

An Exhibition of Doodles by Renaissance Masters and Modern Artists Brings Idle Scribblings From the Margins to the Center: Até os artistas rabiscam, e agora podemos ficar a conhecer alguns dos seus desenhos descomprometidos.

Pablo Picasso’s ‘Les Demoiselles d’Avignon’ Revolutionized Modern Art. Here Are 3 Things You Should Know About It: Um olhar sobre uma das obras de arte fundamentais do século XX.

sábado, 13 de maio de 2023