terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Algoritmocracia


Adofo Nunes (2025). Algoritmocracia. Lisboa: D. Quixote.

Sou, por felicidade, um enorme distraído com as figuras públicas portuguesas. Se fosse mais atento não teria pegado neste livro, visto ter vindo das mãos de um ex-líder de um partido conservador de direita, CDS, cujos valores são diametralmente opostos aos meus. E isso teria sido um erro. Diria até que a leitura começa a valer a pena logo pelo prefácio, um belíssimo exercício de fair play político que nos recorda a importância da discussão, do equilíbrio e do respeito entre diferentes visões políticas para uma democracia saudável. Posso discordar das visões políticas do autor. E irrita-me aquela tendência direitista para meter no mesmo saco do extremismo as boçalidades do pior da direita e o progressismo de esquerda, como se houvesse um equivalente moral entre pregar o ódio, o racismo e a imbecilidade generalizada e lutar por maior igualdade social e económica, pela liberdade pessoal e de género. Uns querem um mundo pior para o seu ganho, nós (porque sim, enquadro-me nas esquerdas à esquerda do PS) queremos um mundo melhor para todos. Considerar isto extremismo é preocupante e um sintoma da acintosidade dos discursos públicos, que é o grande tema do livro.

Quando falo de prefácio, note-se que me refiro ao do autor. O livro tem outro, do punho de Paulo Portas, e ler elogios da parte de um dos mais cínicos praticantes da arte da política que temos por cá, já é esticar demasiado os limites da minha tolerância. Estamos a falar de um clássico exemplo de elitismo português, homem de boas famílias e tradicionalista, que não desdenhou descer às feiras e ser lambuzado pelas velhotas do povoléu para conseguir ascender nas escadarias do poder. É o jogo, bem sei, e é alguém que o sabe jogar muito bem.

Este livro é um profundo alerta para problemáticas que já não são crescentes, são enxurradas culturais que estão a erodir profundamente o edifício da democracia liberal ocidental. Sistema que, não sendo o perfeito, é do melhor que temos e tem garantido uma liberdade e prosperidade genralizadas inagualáveis na história humana. O problema aqui identificado, e também por outros autores, está na extremação do discurso público, na incapacidade de encontrar equilíbrio entre diferentes pontos de vista, porque já se parte para as discussões a partir de premissas radicais que se tornaram surdas aos argumentos contrários. Os resultados estão à vista: o crescimento desmedido da extrema direita, novas gerações que se revêm nos valores negativos do masculinismo tóxico, revanchismo cultural, supremacia racial e retirada de direitos. Como é que foi possível chegar até aqui?

Apesar do tema, o autor tem o discernimento de não culpar unicamente a tecnologia por este mau estado do mundo. As tendências, discursos de ódio, descontentamento, egoísmo e falta de sensibilidade para vida em sociedade sempre estiveram connosco, como franja por vezes mal disfarçada. O que a tecnologia veio fazer foi amplificar estes discursos, torná-los mais visiveis, dar-lhes canais que os media tradicionais não permitiam e que os colocam em pé de igualdade com os discursos mais lógicos e factuais. Essa amplificação trouxe o efeito perverso de lhes conferir uma certa aura de legitimidade, de mero ponto de vista divergente em vez de doudice varrida, misoginia profunda ou rebarbadice assumida. 

O algoritmo, ou melhor, as diversas ferramentas algorítmicas que as plataformas mediáticas de hoje, as redes sociais, utilizam para determinar os conteúdos com que os seus utilizadores interagem, é o mais forte instrumento de enviesamento e que de certa forma, permite níveis de controle ideológico com que os mais batidos tiranos totalitários do passado nem sequer conseguiriam sonhar atingir. O que vemos quando acedemos a redes sociais, quaisquer que sejam (com a excessão do Fediverso, não analisado neste livro) é mediado por instrumentos automatizados que determinam o que vemos com base na combinação dos nossos interesses, padrões de comportamento e objetivos empresariais. Não é por acaso que nos leva aos extremos, porque mostrar o que choca é a forma mais fácil de nos captar a atenção. E é essa atenção, medida, controlada, mediada por sofisticados algoritmos, que é a base da corrente economia digital, em que nós, ou melhor, os dados providenciados pelos nossos padrões de comportamento, sustentam fluxos financeiros milionários. Não é difícil perceber que estamos a dar cabo da nossa sociedade e sistema político para enriquecer um punhado de techbros.

Este livro fala muito bem destes mecanismos, com muitos exemplos do quanto as bolhas informacionais e mediação algorítmica têm desempenhado um papel fundamental nos extremismos que correm a nossa sociedade democrática. Algo que começa a nível pessoal, através do consumo de conteúdos, mas que acaba por transvasar para a sociedade, quer pelas atitudes públicas individuais quer pela reação de responsáveis políticos e institucionais, que se sentem obrigados ou a investir recursos de desmontagem de desinformação ou a extremar o seu próprio discurso para não arriscar perder eleitorado (e isso é algo que está a ser notório na política portuguesa, da esquerda à direita). Quando mais gritamos os ecos das nossas bolhas, mais nos convencemos da sua veracidade única, e mais nos afastamos da sã convivência social, que admite e necessita de diferentes pontos de vista, mas não sobrevive a guerras entre supostos donos de verdades únicas.

O livro vai mais longe e toca numa questão que por cá anda adormecida, a da soberania digital. Enquanto nos deixamos levar pela enxurrada de reações, likes e visualizações, não reparamos o quanto esta erosão é provocada pelo sentido de lucro de empresas que não estão sediadas no espaço europeu. Sublinha o perigo de, em nome de uma ideia romântica mas falsa de liberdade de expressão, deixarmos à rédea solta empresas cujo modus operandi toca no âmago de qualquer sociedade - a forma como flui a informação. Fartamo-nos de discutir as consequências, conhecemos as causas, mas não nos atrevemos a tocar na raiz do problema. É sempre bom recordar que, mesmo quando falamos de IA, estes algoritmos não são entidades conscientes independentes que agem de moto próprio. São programados e parametrizados a partir de decisões saídas de decisores humanos. Não há ghosts in the machine ou computers that say no. Há pessoas, executivos e gestores de topo ou intermédios, que tomam decisões implementadas nas ferramentas que nos afetam a todos. É toda um novo conceito de eminence grise, sem que haja eminência mas apenas busca pelo lucro máximo. Algortimocracia é um profundo alerta para todas estas questões.

Só apontaria um problema ao livro (e não, não tem a ver com as questões ideológicas, isto não é uma recensão clickbait). Talvez advindo da dupla condição de advocacia e política do autor, o livro é demasido longo e repete muitas vezes os mesmos argumentos, enquanto explora as suas diversas vertentes. Diria que conseguira expor com profundidade os seus argumentos com metade das páginas, e com isso apenas ganharia força. De resto, não tenho dúvidas sobre a importância desta leitura nestes dias onde assistimos ao esboroar da nossa sociedade através da janela do telemóvel.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Code Ecstasy

 

Finalmente, um tempinho para poder partilhar os registos da visita à Code Ecstasy, exposição de IA generativa e arte digital organizada pela Zabra, no seu espaço de pesquisa e galeria. Obras desafiantes, a mostrar as novas estéticas possíveis com a geração de vídeo e imagem em tempo real, ou o choque estético que a tecnologia permite. 













Trabalhos de: @other_realm_ , @sin.rostroz@___infrarouge, @gameboyjaki e @Guts?. Ide ao instagram descobrir, vale a pena.

domingo, 28 de dezembro de 2025

URL

 


Just a couple random retro tech illustrations: Selva tecnológica. 

Planetes: no espaço, ninguém nos ouve trabalhar: Eu, sou suspeito - adoro este manga de ficção científica. 

Lego boldly goes into the Star Trek universe with $400, 3,600-piece Enterprise-D: A minha carteira suspirou de alívio. Se o primeiro dos modelos lego Star Trek fosse a NCC-1701 (ou, confesso, a NCC-1701-A), estaria puro modo shut up and take my money. 

Holiday Magic: 12 Wintery Speculative Fiction Books: No espaço, ninguém nos consegue ouvir abrir as prendas? Sugestões de leitura de literatura fantástica onde os temas natalícios dominam. E se nunca leram Hogfather, nem imaginam a delícia que estão a perder. 

The Best 20th-Century American Horror Books, recommended by V. Castro: Os suspeitos do costume, entre Shirley Jackson, Stephen King e Anne Rice (antes desta ter ficado uma tontinha das religiões). 

Dueling Dystopias? 1949 Letter from Aldous Huxley to George Orwell: Agora que vivemos no futuro destes autores, percebemos que Huxley estava correto. Isto, claro, se tirarmos o nariz do deslizar incontrolável do fluxo nas redes sociais de inanidades em vídeo, texto e imagem, grande parte delas já geradas sem intervenção humana, para pensar um pouquinho. 

Before Wonder Woman, There Was Fantomah: A golden age dos comics legou-nos alguns personagens icónicos, outros que ficaram esquecidos, e esta bizarria - o trabalho quasi-surreal de Fletcher Hanks. 

A Vida Oculta de Fernando Pessoa: Este divertido livro que brinca com Pessoa está a ter uma segunda vida, graças a uma nova edição, e merece ser lido. 

Archiving the internal art archives from GamePro magazine: A arte clássica da ilustração de jogos de computador. 


Artist is Robert Neumann: Arquiteturas computacionais. 

Chinese-Made Buses in Norway Can be Halted Remotely: Se não me falha a percepção visual, a Carris também adquiriu veículos destes. A telemetria dos veículos permite muito mais do que a simples recolha de dados para melhoria de sistemas que promete. E duvido que esta capacidade seja exclusiva de modelos chineses. 

I let Gemini Deep Research dig through my Gmail and Drive - here's what it uncovered: É uma função que faz sentido, permitindo trabalhar com os nossos dados e documentos pessoais. 

Meta is making billions of dollars from scam ads on Facebook, Instagram and WhatsApp, report says: Surpreendidos? Porquê? Já há muito que se percebeu que a ligação entre o que a Meta afirma como compromissos éticos e as suas práticas comerciais reais é inexistente. Recordem, nós, os utilizadores, só lhes servimos como massa a explorar para espremer o máximo possível de lucros, e se isso tiver consequências sociais, culturais e pessoais danosas, é-lhes indiferente. 

Camera Capabilities Unlocked from a Mouse: A comunidade maker surpreende sempre com a forma como consegue encontrar formas de se reapropriar das tecnologias. 

AI Is Supercharging the War on Libraries, Education, and Human Knowledge: De facto, a forma como a IA nos é vendida, como promessa de acesso fácil a conhecimento e a fazer coisas sem esforço, é de um profundo Anti-intelectualismo que capitaliza a clássica preguiça humana. 

Pluralistic: "Flexible labor" is a euphemism for "derisking capital": Doctorow anda em força, a desmistificar as formas como o capitalismo predatório trata as pessoas como elementos descartáveis. Curiosamente, Doctorow estará em Lisboa na Websummit, numa cidade que está a ser moldada pelas forças que descreve, sobredependente do turismo e dos nativos digitais, que tem como consequências uma espantosa crise habitacional e um deserto cultural onde a textura da cidade se transformou para servir faltas visões de tipicidade a estes públicos. Já o evento em si é notório pelos subsídios milionários que recebe da câmara de Lisboa, que desvia esse dinheiro de iniciativas culturais e sociais para favorecer uma organização predatória que salta de cidade em cidade em busca dos governos que melhor a acolham (ou seja, que lhe garantam lucros). A esmagadora maioria dos lisboetas não conseguiria pagar um ingresso para ir ver Doctorow à Summit, com os bilhetes mais baratos a custar quatro dígitos. A ironia disto tudo é que o autor e ativista vem ao evento falar dos danos trazidos à economia e sociedade pelas práticas capitalistas predatórias. 

OpenAI Can’t Fix Sora’s Copyright Infringement Problem Because It Was Built With Stolen Content: E se fosse só o modelo do Sora… este tipo de pilhagem é estrutural na indústria da IA. 

Las pegatinas de los portátiles: nunca nada tan icónico simbolizó tanto: Confesso que tenho o meu portátil pessoal sem quaisquer marcas. Já o de trabalho? O Chromebook de combate que me custou trocos e aguenta a violência das aulas há mais de dois anos? Está repleto de autocolantes, que os meus alunos adoram decifrar. 

Pluralistic: A tale of three customer service chatbots (12 Nov 2025): É, de facto o apoio ao cliente está pensado para desmotivar os clientes de pedir ajuda, e a IA nisso veio ajudar a piorar e muito estes sistemas. 

AI is Most Popular with People Earning Six Figures, Study Shows: É de notar que geralmente quem ganha este tipo de salários tem como maior objetivo aumentar lucros, e prefere fazê-lo cortando o mais possível nos salários de quem ganha menos dígitos por ano. Usar IA para substituir trabalhadores é o sonho húmido desta gente.

La IA ya multa en España: lo que parecía ciencia ficción empieza a ser real: A automatização do sistema de multas rodoviárias a levantar questões éticas, em que uma medida aparentemente simples se revela o resvalar para uma socidade de vigilância permanente.

AI Is Failing at the Most Hilarious Task Imaginable: A criar posts de redes sociais. Mas sejamos honestos, quem usa IA para as redes não está interessado em qualidade, apenas em encher chouriço.

AI Decodes Visual Brain Activity, Writes Captions for It: Calma, não é telepatia, mas um curioso uso de machine learning na deteção de padrões de atividade cerebral.


Advertisements for Topps Comics: Drácula, com estilo. 

The Lisbon Airport is turning away private jets inbound for the Web Summit: É agora que Lisboa vai mesmo ter um novo aeroporto. Como o Charles Coins adora aparecer nas fotos como pateta útil ao lado dos famosos e bilionários, como a websummit é tão tão importante para a cidade e para o país que um evento cujos acessíveis bilhetes vão de ums meros mil e poucos euros a vinte e cinco mil tem mais apoios municipais do que a maioria dos projetos sociais e educativo, suspeito que para o ano teremos mesmo novo aeroporto, só para dar acesso aos jatos privados dos bilionários e poupar-lhes o incómodo de chegar ao evento por outros meios. 

Una barra de pan cuesta un euro en el supermercado. Por el mismo precio Europa acaba de comprar 18 cazas de combate: É daqueles investimentos que creio que todos preferíamos não ser necessário, mas o mundo não é um local seguro e a defesa não pode ser descurada. 

What Socialism Got Right: O que mais choca na demonização do socialismo e das esquerdas em geral é ver a forma como se desconsideram os direitos humanos mais elementares - saúde, pão, habitação, educação, salários justos, respeito pelos indivíduos. 

The Roman Empire’s Entire Road Network Just Got Mapped, and It’s Mind-Blowing: Se todos os caminhos iam dar a Roma, é o resultado do poder de uma rede. 

Dubái tiene un serio problema con sus millonarios: hay aparcamientos llenos de superdeportivos de lujo abandonados: As estéticas do desperdício capitalista. 

You’ll Never Guess What Happened to Saudi Arabia’s 100-Mile Skyscraper: O que é que acontece quando o herdeiro de um regime retrógrado e sanguinário baseado na exploração de petróleo decide gastar o dinheiro que tem em excesso? Absurdos destes. 

Cloning isn’t just for celebrity pets like Tom Brady’s dog: Confesso que é uma ideia inquietante. Como amante de cães, sei o que é a dor de perder um animal, mas também sei que os animais não são objetos. Cada um tem a sua personalidade, e a clonagem apenas cria a ilusão que mantemos o animal que perdemos. Mas isto, é o lado comercial de uma tecnologia que se está a mostrar interessante para ajudar a preservar espécies em vias de extinção. 

Pluralistic: The enshittification of labor (07 Nov 2025): O capitalismo late stage faz de tudo para manter os seus lucros, até mesmo criar o desemprego como forma de manteros salários baixos. 

When Words, And Then Truth, And Then Reality, Fall Apart: Uma sociedade neurótica, onde as palavras são deturpadas e as emoções negativas exacerbadas. 

Toy Company Funko Has ‘Going Concerns’ About Its Future: Quando o modelo de negócio é saturar o mercado de brinquedos de gosto duvidoso temáticos da cultura pop, o futuro não é prometedor (e não vai deixar saudades). 

The Algorithmic Presidency: A vacuidade extrema de uma presidência que se alimenta do vácuo intelectual e vive da propaganda rebaixada ao mínimo elemmentar. 

La gran paradoja de EEUU: el mundo no para de pedirle más cazas F-35, pero China le ha cerrado el grifo para construirlos: Agruras da geopolítica. As super-armas americanas necessitam de acesso aos recursos naturais chineses, o que significa que a China consegue complicar os processos de fabrico das peças essenciais para as aeronaves de topo. 

Las empresas en la sombra que se están haciendo de oro con Mercadona: el éxito silencioso de Familia Martínez o Profand: É um supermercado onde me recuso a ir fazer compras. Aterrou por cá em grande, mas bastou uma simples visita para perceber o quão fechado é o ecossistema dos produtos que vende, sem diversidade de marcas, e das poucas que não pertencem à marca do mercado, rareiam as portuguesas. Recuso dar o meu dinheiro a empresas que favorecem primordialmente as suas marcas próprias, ainda por cima estrangeiras. 

The World Turned Upside Down: A China, a emergir como uma potência elétrica e ambientalista, enquanto o ocidente se consome em desinformação.

There Are No Weird Blogs Anymore Cause It’s More Fruitful to Drive Them Out of Business: Um olhar para o modelo de negócio dos fundos de investimento, que adquirem empresas não para as fazer lucrar, mas para espremer o máximo antes de as vender ou fechar: "endlessly interchangeable in the service of maximizing shareholder value. Only chumps make money by selling goods or services these days; the real geniuses rely on management fees, deal fees, dividend recapitalizations, real estate deals, and the like. That allows — requires! — a private equity firm to divorce its incentives from that of its own portfolio company, making it, at best, agnostic to whether the company lives or dies".

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Timor entre invasores : 1941-1945


Maria Bretes (1989). Timor entre invasores : 1941-1945. Lisboa: Livros Horizonte.

Nem chega a ser um apêndice nas histórias da II Guerra (quando muito, meia frase), a história do envolvimento da então colónia de Timor no teatro de operações do Pacífico. Diga-se que não é uma história muito abonatória para o nosso lado. À época, Timor era uma colónia esquecida, colonizada por um misto de funcionários públicos descontentes por se sentirem castigados pela colocação e degredados expulsos de Portugal continental por crimes políticos. A economia era residual, e o poder manifestava-se pela manipulação dos interesses dos régulos locais. As forças de defesa mal totalizavam uma companhia mal armada. 

No quadro das operações no Pacífico, Timor foi inicialmente ocupada por forças australianas e holandesas (antes do colapso das índias orientais holandesas). A fraqueza do governo português era evidente e a ocupação deu-se sob a desculpa de auxílio à defesa da colónia. De certa forma, ajudou a precipitar o inevitável, com uma invasão japonesa que expulsou os primeiros ocupantes, e se notabilizou pela forma como mobilizava a população indígena contra os colonos. No meio disto, a ironia profunda de Portugal ser um país neutro no conflito com território ocupado pelos beligerantes, com ordens dadas aos representantes do governo português na colónia de não cooperação com ocupantes, mas também de não resistência. Havia outro caso de perigo, com o território de Macau em risco de ocupação, e uma nítida incapacidade portuguesa de projetar forças, mesmo que simbólicas, para estes territórios. Resistência houve, por parte de forças especiais australianas com auxílio de alguns dos degredados portugueses e timorenses.

A recuperação da colónia deu-se no quadro das condições de cedência da base das Lajes aos americanos. A ocupação deixou marcas, com relatos de massacres de civis timorenses e colonos, e campos de concentração. Maria Bretes traça esta história com recurso a relatos militares australianos, ao relatório que o governador do território fez para Lisboa (um documento selado e secreto, por ser uma historia humilhante para o nacionalismo salazarista, e que se viria a repetir em moldes semelhantes com o fim do Estado da Índia), e outra documentação, onde se inclui o intrigante relato Funo de Cal Brandão, que acompanhou a resistência das forças australianas nas montanhas timorenses.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Feliz Natal!

 

Este ano, em mobo vibecoding. Estamos na época, por isso, malta, sinceros votos de... tendes de ir abrir para ver (não é spam, mas peço-vos perdão pelo trauma sonoro): https://archizer0.github.io/fn2025/

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Alemanha Ensanguentada


Aquilino Ribeito (1975). Alemanha Ensanguentada. Lisboa: Bertrand.

Uma visita de Aquilino à Alemanha no pós-guerra imediato, que é ao mesmo tempo literatura de viagem, reflexão sobre a sociedade de um país, e um analisar de uma história contemporânea ainda fresca nas memórias. Por pós guerra entenda-se o pós-I guerra, com a derrocada da monarquia alemã, as exigências impossíveis dos aliados vencedores e vingativos, e as convulsões sociais e políticas de um país derrotado. Não se trata do mítico ano zero do pós-II guerra, com um país em escombros e arrasado a ter de enfrentar os horrores que provocou. 

Aquilino era arguto, e na análise que faz do país que revisita observa por várias vezes que o gérmen de uma futura guerra e da liderança de homens fortes está presente no pós-guerra que visita. Note-se que a a obra foi publicada em 1935, mas a viagem do autor data de muito antes. Anota as privações de um povo, as convulsões políticas, a humilhação da derrota e a perda de caráter moral, mas também sublinha a industriosidade alemã, e a sua capacidade de recuperação. O olhar do escritor português atravessa cidades e regiões, faz-se de conversas e interações com gente de todos os níveis.

O livro termina com uma visita a algumas zonas de batalha, com especial emoção nas zonas da frente ocidental onde o CEP verteu sangue pelas terras de França e Aragança (uma daquelas deliciosas expressões hoje esquecidas que o escritor tanto usa na sua obra). A visão de Aquilino sobre a participação portuguesa na guerra é realista e crítica, embora se note um certo elogio da entrada na guerra e a observação da sua inevitabilidade face à defesa das colónias, embora observe que a perda de vidas humanas e os gastos militares não compensam "uns palmares no além mar". 

domingo, 21 de dezembro de 2025

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Ian Miller, 1972: Fronteiras.

Novidade: Wicked – Gregory Maguire: Apesar de acima de tudo, pensar que o importante é que cada um leia o que goste e lhe apeteça, fico algo preocupado com estas tendências culturais. Isto significa o remexer de uma propriedade intelectual centenária, que tem o seu valor de época, mas voltar a pegar nela para recontar as histórias é do meu ponto de vista um grau cultural zero, mas muito agradável aos comités de executivos que procuram o lucro mais fácil nas indústrias culturais. 

Can “The Simpsons” really predict the future?: Gostamos imenso de ver padrões onde eles não existem, apesar da forma como esta série tem, aparentemente, sido capaz de predizer eventos. A resposta nesta entrevista é o "educated guess", ou seja, já à época a tendência era visível. 

Bugonia is a galaxy brained masterpiece: Capturar a bizarria dos tempos modernos. 

The Movies That Capture Women’s Deepest Fears: O cinema, e a mulher, a tentar mostrar que pode ir para lá de elemento decorativo ou de titilação masculina. Quanto a The Shining, o senhor King que me perdoe, mas o recontar da sua história por Kubrick é uma obra magistral. 

Astérix na Lusitânia: Suspeito que vou ser como os gauleses da aldeia - o único reduto que não vai ler o novo livro. Porque, confesso, tenho traumas que vêm da infância, do não me deixarem ler outras BDs porque o Asterix é que era educativo, e mais tarde, quando professor de artes, lidar com tantos e tantos colegas (de línguas e artes) que torciam o nariz à BD, exceto o... pois, adivinharam, porque era educativo e por isso podia-se tolerar nas mãos das crianças. 

Recomendações de livros para ler em novembro: Autores novos e clássicos, nestas sugestões de horror. 

Reading Foundation in the Release Order: Apesar de todo o histórico de elogio, é de notar que a série clássica de Asimov não está a envelhecer bem. 

El día en que 'Los Simpson' se codearon con 'Toy Story': el mítico episodio que cambió la historia de la televisión: O que hoje nos parece trivial, foi de vanguarda e um feito tecnológico na sua época. 

What to read this weekend: A deep dive into humankind's search for alien life: Leituras que nos levam a refletir com a nossa obsessão com a eventualidade de vida alienígena. 

Dear Writers, If You Use AI To ‘Fix’ Your Writing, You Are An Ass: Deveras. A menos que estejam empenhados em produzir conteúdo para consumo rápido e inconsequente, nesse caso, a IA até fará melhor do que vós. 

Assim foi: Fórum Fantástico 2025: Recordar o FF2025, sabendo que se a vida são dois dias, o Fórum são três. 

YOU DREAMED OF EMPIRES, Álvaro Enrigue: Tenho estado a ler este livro, desconcertante, e realmente tem uma das prosas mais acutilantes que li nos últimos tempos. Também não tem pejos, não há heróis nem vítimas, todos são opressores neste recontar da conquista espanhola do México. 


Art by Jim Steranko, “Captain America” #113: Pop comics.

Una comparación visual de modelos generativos de imágenes ante «instrucciones complicadas»: Testes que nos ajudam a selecionar ferramentas de acordo com os nossos objetivos. 

The Validation Machines: O empobrecimento cultural trazido pela algoritmia das redes sociais. 

Ya tenemos certificado de defunción definitivo de los NFTs: los que perdieron millones lo están contando en internet: Há uma patetice especial em rir-se de ter enterrado dinheiro em coisas inúteis, mas diga-se, sempre houve uma estupidez especial no mercado dos NFTs. Quanto mais leio sobre isto, mais forte a sensação que fico que as possibilidades técnicas e sociais trazidas pelos NFT foram arrasadas pela mais básica ganância. 

Desmontar una baliza V16 y quedarte con su SIM "gratuita" durante 12 años suena muy bien. Tiene un pequeño problema: Aquela chico-espertice típica, quer nossa quer doutros países. Se os sinalizadores de emergência dos carros têm um simcard com conectividade garantida, porque não dar-lhe a volta para ter internet grátis no telemóvel? E é aqui que a chico-espertice esbarra no muro da engenharia cuidada. 

Why We’re Having Difficulty Understanding AI: A dar que pensar. A visão cognitivista, que coloca a inteligência como algo quase exclusivamente humano, entra em conflito com outras formas, como o clássico behaviourismo, que olham para os comportamentos como algo mecanicista e moldável. Algo que está na base conceptual do desenvolvimento da IA: "AI does not copy human intelligence, cognition, or whatever you want to call it. What is being copied are the processes from which it emerges. Like human intelligence, AI is shaped by its environment—the difference is that it is not constrained by biological limitations. Conceptually, understanding AI might not be difficult, but it implies questioning our beliefs about the ‘mind’: this is the hard part." 

Algo grande se avecina en el dinero europeo. El BCE ha puesto fecha a un paso clave hacia el euro digital: Um projeto interessante, que talvez nos beneficie a todos. 

This AI-Generated Sitcom Is Actually Unsettling to Watch: A IA é excelente para o bizarro e incomum, mas anda tudo a esforçar-se para obter dela o básico e banal. 

El extraño encanto de los «atractores extraños»: caos convertido en arte: Brincadeiras com matemática e teoria do caos. 

La contraseña de algunos servidores del Louvre era «LOUVRE». Ahora todo encaja: Suspeito que se fossem feitas auditorias a outras instituições... na verdade, é simples. A cibersegurança requer investimento contínuo, e as gestões de instituições não gostam muito deste tipo de gastos recorrentes. 

The Future of Advertising Is AI Generated Ads That Are Directly Personalized to You: Porque o inferno da publicidade online não poderia ficar pior, eis o cruzamento entre IA generativa e perfilagem algorítmica - conteúdos publicitários gerados individualmente de acordo com o perfil do utilizador. 

A Prophetic Poem about Artificial Intelligence Written in 1961: Esta, é intrigante. Apesar de não ser assim tão estranho quando isso que nos anos 60 se escrevessem poemas sobre máquinas pensantes e suas possíveis consequências. Nos anos 50, a ficção científica já falava disso. 

Los artistas ya cobraban una miseria en Spotify. El colmo: acusan a la plataforma de permitir bots que se llevan sus royalties: Um vislumbre sobre o método de gestão de pagamentos de direitos de autor do Spotify. Pista: é ainda pior do que imaginam, e dá azo ao uso de bots para inflacionar métricas (ou isso, ou há alguém muito masoquista a ouvir drake 24 horas por dia...). 

Todos los rovers de Marte, incluido el que la historia olvidó, y cómo cambiaron nuestra visión del planeta rojo: Recordar a história dos rovers marcianos. 

O golpe de Estado da tecnologia autoritária: A aliança diabólica entre bilionários e a extrema direita. 

La propuesta radical de Portugal para frenar la turistificación: un cable submarino que se conecta con EEUU: Daquelas notícias sobre o nosso país que não se discute nos telejornais e infindos programas de comentariado televisivo - os planos para reconverter o porto de Sines, tornando-o um hub europeu à escala global, bem como o investimento em pontos de acesso de cabos submarinos (faz sentido, dada a nossa posição estratégicas) e data centers. O artigo, no entanto, é claro, se a infraestrutura que liga Sines ao resto da europa não for melhorada (ou seja, investimento ferroviário), de nada servirão estes investimentos. 


Lesbos Jungle: Cenas pulp.

Airbus Signs MoU with Portuguese Industries Ahead of Eurofighter Proposal: Confesso que não esperava polémicas ou novidades empolgantes na escolha de equipamentos militares em Portugal, mas a reforma dos F-16 está a trazer surpresas. E diga-se que apesar do F-35 ser a aposta mais moderna, os seus custos operacionais (e as problemáticas das aeronaves) poderão revelar-se proibitivas para o nosso nível. Note-se, também, que países como Espanha e Alemanha estão a rejeitar os F-35 enquanto reforçam os Eurofighter e projetam o desenvolvimento de aeronaves de sexta geração. Que, francamente, é o que faz sentido. Precisamos de capacidade industrial europeia avançada, e isso não se consegue a comprar aviões caríssimos a um aliado americano cujos governos progressivamente autoritários estão a deixar muito claro que não são de confiança. 

Madrid y Lisboa estarán unidas por el AVE. Solo llegará (si llega) 24 años tarde: Esta é uma leitura de ridículo deprimente. A inexistência de sequer básicas ligações ferroviárias entre Lisboa e Madrid é patética, e um anacronismo numa União Europeia que procura reforçar esta infraestrutura para diminuir a saturação nos céus, porque se se pode ir de comboio, porquê ir de avião? Mas estamos em Portugal. Na via férrea de alta velocidade, tal como no futuro aeroporto de Lisboa, discute-se imenso, e investe-se em estudos, análises e avaliações. No entanto, há décadas que estas infraestruturas estão por construir. 

Ridiculousness Canceled After 14 Years/46 Seasons Amid MTV Changes: E chega ao fim uma das maiores patetices televisivas, o programa que capitalizava nos vídeos amadores a documentar acidentes bizarros, apresentado por pessoas adultas mas claramente enclausuradas numa interminável adolescência anacrónica. Há pior, claro, o embrutecimento mental e cultural dos reality shows é uma boa amostra de como se pode cair ainda mais fundo em termos de cultura generalista. 

Comer frente a una pantalla no es una manía moderna: es el nuevo ritual social: Confesso. Sou daqueles que quando come sozinho num restaurante, deixo o telemóvel de lado, e até mesmo o livro. Como a olhar para a comida, como um sociopata contemporâneo. 

NASA Issues Horrified Response to Kim Kardashian: Ah, então o truque para se ser convidado a ver in situ os lançamentos da NASA é espalhar tweets com teorias da conspiração e informação falsa? Ajuda se se for um ator empenhado nas indústrias de lixo cultural. 

‘These Horrible Objects Are Illegal’: French Authorities Discover Alleged Child Sex Dolls on Shein: O empreendorismo capitalista encontra sempre forma de capitalizar nos vícios, taras e manias. Mesmo que sejam perigosas e ilegais. 

Five Moments in the History of Chinese Cybernetics: Uma leitura interessante - como a cibernética de Wiener influenciou o planeamento tecnológico e económico chinês, cujos resultados são evidentes. 

US Army Tells Soldiers to Go to German Food Bank, Then Deletes It: É tão patético ver o país mais poderoso do mundo paralisado por quezílias políticas, e a chegar ao ponto em que têm de ser outros países a alimentar os seus soldados, bem como a pagar os ordenados aos trabalhadores civis das bases militares. Por cá, nos Açores, o mesmo está a acontecer. 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

Salta Pocinhas

 


Aqui há dias abro o meu email e deparo-me com esta prenda - uma aluna que se afincou a usar a IA para me retratar na aula. Aluna de dez anos, note-se. Fartei-me de rir com as piadas que a imagem tem (logo a começar pelo meu ar sóbrio e responsável, a anos luz da minha barba hirsuta e t-shirt geek debaixo do casaco, mas isso é o primeiro sintoma óbvio dos enviesamentos da IA generativa). Tenho de as explicar. Não, a aluna não se enganou, o professor está mesmo a segurar uma raposinha ao colo em vez da expectável cadela.

Não é uma raposa qualquer, é uma Salta-Pocinhas, referência ao trabalho com que finalizámos o primeiro período, sobre o elementar do processamento de texto tendo como texto base alguns excertos da obra clássica de Aquilino Ribeiro, que são um gosto de ler em voz alta às turmas (podem não aprender muito comigo, mas pelo menos sabem porque é que são fagueiros). O martelo com cara de gato é a outra piada.

Sou aquele professor horrível que nas aulas os obriga a guardar o rato na mochila e usar o trackpad, porque se não o fizer não aprendem a usar este componente e arriscam-se a crescer e ficar como aqueles adultos que vejo a torcer os pulsos com o rato em cima do chassis do computador, dizendo que não lhes dá jeito usar o trackpad e o rato é mais confortável (não é alucinação, é algo que vejo recorrente com estes olhos que a terra há de comer). Uma das consequências da minha horribilidade é o ar de surpresa generalizada quando descobrem o deslizamento nas páginas com dois dedos ou os toques para menu de contexto, geralmente acompanhados de um coro de "não sabia que se podia fazer isto". Para os assustar, aviso-os que qualquer rato que veja na sala irá conhecer o meu gato - um esmagador martelo com olhinhos.

Só não percebi a origem das luvas. Mistérios dos algoritmos.

Percebi que a miúda se esforçou imenso para conseguir a imagem que queria, com todos os alunos com o seu computador. Variantes anteriores da imagem, que me mostrou, representavam a aula com o professor a falar e os alunos a contemplar cadernos. O aspecto geral da sala vem de algo que ela ainda não conhece, mas já lida no dia a dia, o viés algorítmico e a forma como os outputs destas ferramentas perpetuam estereótipos aprendidos no treino. Afianço-vos, no entanto, que não dou aulas em estrados, o que é uma felicidade, senão estaria constantemente a meter atestados médicos por acidente em serviço.

The street finds a way, recordo muitas vezes a frase de William Gibson sobre a forma não linear como as pessoas se apropriam de tecnologias. Fico sempre a matutar nisso quando vejo os meus alunos a usar geradores de IA para explorar as suas ideias, pela relativa facilidade com que inventam o inesperado. Até me conseguem transformar num professor de aspeto responsável e cenas. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Arcas Encoiradas


Aquilino Ribeiro (1962). Arcas Encoiradas. Lisboa: Bertrand.

É um prazer, mergulhar na prosa rendilhada de Aquilino. A leitura é um desafio, este autor conhecia a língua como poucos e não tinha medo de se atrever a levá-la aos extremos. Este livro não é um romance, mas sim uma coletânea de textos à moda de crónicas. Soa estranho, ler e apreciar crónicas escritas no passado, a refletir sobre temas e problemas há muito esquecidas, mas estas não são crónicas de costumes ou feitos que só fazem sentido no seu momento contemporâneo.

Aquilino olha para o país profundo e antigo, analisando primeiro a rica tradição de arquitetura megalítica de uma forma que não comento. O seu saber literato estava em óbvio conflito com os estudos arqueológicos, mas não deixa de ser interessante ler a ligação que faz entre os povos de antanho com os habitantes serranos que tão bem conhecia. 

Passa daí a olhares sobre o interior português, descrevendo a riqueza cultural e de vivências das beiras e minho. Olha para as cidades e vilas, nalguns casos com elogio cultural, caso de Viseu com o seu museu hoje dedicado a Grão Vasco, noutras, temperando com as suas memórias de juventude, caso de Lamego, onde entretece recordações do seu tempo de estudante com a cidade dos seus tempos. As terras, as gentes, as paisagens duras e belas, os modos de vida e um elogio saudável ao "vom binho berde" (e como o compreendo!) ficam registadas nestas crónicas de um tempo, e de um país, que já não existe. Embora seja interessante perceber, pelas minhas próprias experiências de boa hospitlidade, melhor comida, gentes simpáticas e serranias de perder o fôlego entre o verdejante da floresta e o cinzento das penedias, que se evoluímos e mudámos, há algo no carácter que se mantém, perene. Um modo de estar e viver que Aquilino intuiu vir já desde os tempos em que erigíamos antas nos ermos e serranias.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

carne.exe

 

Ainda a refletir no impacto sensorial e emocional de carne.exe, a performance onde um ator interage em palco com algoritmos de inteligência artificial generativa treinados pelos criadores. Não é um mero artifício estilístico, a forma como antropomorfizamos e criamos relações emocionais com o que grosso modo são algoritmos probabilisticos está no cerne desta performance. Deixa-nos a pensar sobre humanismo, biohacking, relações humanas mediadas por tecnologia, traumas, solidão, dor e memória, a facilidade com que atribuímos emoções ao artificial. A performance é uma experiência espantosa. O algoritmo generativo visual gera imagens animadas a partir da interacção com o ator. O trabalho de Albano Jerónimo é de um tocante diálogo emocional. Os diálogos incorporam um lllm. Isto significa que a cada nova exibição, a performance será sempre diferente (é natural, sendo generativa). Esse é um pormenor humanista, recordando que no teatro mais puro, nunca há duas representações exatamente iguais,  e trazendo IA generativa para isto quebra a exactidão de reprodução a que o digital nos habituou.  



Assisti à primeira de três sessões esgotadas no CAM, mas já corre que provavelmente  esta performance se irá repetir. Se sim, recomendo que não percam esta experiência de IA generativa artística. Os ZABRA  estão a marcar por cá a vanguarda experimental de interseção entre arte e tecnologia, com projetos estimulantes, desafiantes e belos. Esta performance pioneira (divulgada em muitos média com um redutor "o ator Albano Jerónimo contracena com um computador") representa bem o caminho inovador deste grupo de jovens artistas. 



Não resisto ao pormenor: aqueles sapatos são incríveis, terão tido origem em design generativo aplicado à impressão 3D?