Vasco Pulido Valente (2006). Um Herói Português: Henrique Paiva Couceiro. Lisboa: Aletheia.
"Absurdo" foi a palavra que mais me veio à mente durante a leitura desta biografia daquele que muitos conservadores consideram um herói nacional. Desengano-vos desde já, à partida: o heroísmo do título é na verdade uma perfeita e subtil ironia, que se torna nítida durante a leitura. Pulido Valente tinha um afiado sentido crítico e deixou-o à solta neste livro, que é ao mesmo tempo a história de um homem e o retrato de uma fase conturbada da história portuguesa.
O desmontar de mitos heroicistas começa logo com os primeiros passos desta biografia, onde depressa se percebe que a personalidade é tudo menos heróica. Profundamente religioso, a puxar ao fanático e ascético (fica no ar a questão de como é que se sujeitou ao pecado da luxúria para deixar descendentes), mas também atreito à violência extrema. Tornar-se cadete e no mesmo dia disparar cinco tiros numa rixa não é para todos.
A elevação deste personagem a herói nacional deu-se na àfrica do final de século, palco dos jogos entre nações colonizadoras e onde Portugal se viu na obrigação de ocupar de facto os territórios que afirmava pertecer-lhe por direito histórico. Paiva Couceiro participou nas campanhas de pacificação em Moçambique e Angola, onde se distinguiu pelo sucesso das operações militares e a violência com que destratava quer os seus soldados, quer os adversários. A história destas campanhas faz-se de alguma incompetência militar generalizada, alguma sorte, o explorar das divisões entre povos nativos e a cupidez dos seus chefes, e alguma superioridade do armamento europeu. O heróiciso de Couceiro desmontra-se na forma como carregava sobre os selvagens africanos, em nome da pátria lusa. É sempre fácil ser herói nestas circunstâncias.
Regresado ao solo europeu, imbuído de espírito de missão patriótica, decide meter-se na política dos últimos tempos da monarquia. É aqui que a história de vida começa decididamente a meter-se pelo profundo absurdo. As suas intervenções revelam um caráter profundamente ingénuo e incapaz de compreender as complexidades dos jogos políticos. As suas petições e tomadas de posição roçam o ridículo, e isto num país onde a política era tão absurda que os parlamentos nem se davam ao trabalho de discutir orçamentos, por acharem que a despesa era tanta que nem valia a pena tentar controlá-la. Ao retrato de Couceiro junta-se um retrato crítico dos estertores políticos da monarquia portuguesa, da ineficácia dos seus políticos e de um regime praticamente incapaz de governar o país, preso a clientelismos e sujeito à pressão crescente dos republicanos.
A implantação da república vem projetar Couceiro para as primeiras linhas da defesa da monarquia. É dos poucos oficiais que se presta a tomar ações militares para meter fim à revolução, entusiasmo patriótico realista que não é seguido pela maior parte dos soldados e oficiais, mais interessados em ver para que lado ira pender o poder do que realmente agir, quer em defesa da monarquia quer da república. Fica aqui marcado o segundo heróismo de Couceiro, as suas largamente ineficazes manobras e ataques sobre os revoltosos entricheirados no Marquês de Pombal. Não serviu de nada, não conseguiu sequer colocar em perigo os adversários, mas ficou marcado como o grande herói monárquico, defensor do seu rei perante a turba revolucionária.
Não surpreende por isto que Couceiro se tenha tornado a figura de charneira dos movimentos contra-revolucionários. Os primeiros anos da república foram passados em conspirações contínuas, em exílio na Galiza, onde se refugiou com um punhado de monárquicos. A incompetência das conspirações e intentonas em que se envolveu, sempre como líder empedernido e empenhado na restauração, chega a ser dolorosa de ler. O seu grupo de lealista incluía desde aristocratas sem um pingo de capacidades a militares de baixa competência, e incluía uma fatia do leal povo, na verdade meros camponeses serviçais arregimentados pelos patrões para servir a causa monárquica.
A falta de dinheiro, as más decisões logísticas e a pouca vontade do monarca deposto em voltar ao trono eram notórias, mas isso não impedia Couceiro e os seus correligionários de se desdobrarem em conspirações (largamente ineficazes) e sonhos de sublevação nacional a partir do rastilho aceso por incursões. Estas operações militares roçam o absurdo. Pensem em tudo o que poderá correr mal. Soldados desarmados, porque não há armas ou munições suficientes para todos, mal liderados, que se chegam a perder nos caminhos entre a Galiza e o norte português. Sublevações que se desvanecem, tentativas de invasão que depressa obrigam à fuga dos invasores. Chega a ser hilariante ler a incapacidade militar destes heróis. Já a República levou-os a sério, deslocou meios militares e os violentos militantes civis da Carbonária para o norte. Tudo isto culmina na restauração conhecida como monarquia do Norte, vinte e três dias em que o Porto se tornou o reino de Portugal, e é em si mais uma história de profunda incompetência militar e política, com a conivência de um povo que sabia que não valia a pena chatear-se, e por isso aclamava o rei enquanto esperava que a intentona inevitavelmente desabasse.
Exilado em Espanha, assiste à entrada do país na I Guerra, ao sidonismo e aos colapsos políticos e económicos, sempre a sonhar com uma restauração monárquica que nunca iria acontecer. A entrada em cena de Salazar leva Couceiro a querer voltar às proclamações e conspirações. Salazar não perde tempo e exila-o à força várias vezes, neutralizando uma voz que sabia ser incómoda mas ineficaz. Já em idade avançada, regressa ao Portugal do Estado Novo, para se resignar a uma vida quasi-monástica e a escrever panfletos onde explica a sua visão para o país e procura engrandecer o seu papel na história.
Ao longo destas páginas, fica patente o ridículo deste herói português, mas também o de um país de elites incompententes, agarradas a títulos nobiliárquicos, sonhos de grandeza e incapacidade de compreender as mais elementares realidades. É a maldição do caráter português, em evidência na história triste de um homem que se julgava herói, mas na verdade pouco mais era do que um poltrão.