quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Tragédias do Ciclo Troiano


Sófocles (1973). Tragédias do Ciclo Troiano. Lisboa: Livraria Sá da Costa.

As histórias que dão continuidade ao poema épico da Ilíada, esse rico substrato que os fragmentos que até hoje nos chegaram levam a intuir um enorme universo de histórias, poemas e peças de teatro que exploram os vários detalhes e ramificações da história original, ela em si também um coalescer de diferentes relatos e tradições da poesia oral da Grécia Antiga. Aquilo a que hoje chamaríamos um "universo ficcional".

Da minha leitura destas tragédias, saliento um foco muito rígido de Sófocles na noção do dever de honra acima de tudo, por trágicas que sejam as consequências para os personagens dos esforços para manter ou restaurar a honra. Os infortúnos em que os seus personagens são colocados advém dessa vontade.

A trilogia de peças inicia-se com Ájax, o contar de uma história da guerra de Tróia. Preterido na posse da armadura de Aquiles pela argúcia de Ulisses, um enfurecido e fora de si Ájax chacina um rebanho de ovelhas. Na sua mente iludida, crê piamente que está a vingar-se do ultraje matando aqueus e torturando Ulisses, o seu líder e inimigo confesso, apesar de aliados na epopeia troiana. Confessa, inclusive, à deusa Atena, este seu sucesso. Mas o dealbar do dia mostra-lhe a verdade. Sentindo a sua honra perdida, entrega-se ao desespero, e decide redimir-se pelo suicídio, caindo sobre a sua própria espada apesar das súplicas e argumentos da sua escrava e mãe do seu filho, de companheiros e do próprio Ulisses, que apesar das disputas não deseja tal mal ao seu inimigo. Ájax prefere morrer a viver com o peso da vergonha da sua ilusão.

Electra leva-nos à Tebas pós-ilíada, com a vingança de Orestes sobre os assassinos do seu pai, Agamemnon. Electra é a grande mulher trágica, consumida pela ideia de vingança pela morte do pai às mãos da sua esposa, ultrajada pelo sacríficio da filha Ifigénia (não há bondade na maldição da casa dos Atreus, todos os personagens seguem a via do sangue). A oportunidade de vingança surge com o regresso do agora adulto irmão Orestes, que Electra tinha conseguido por a salvo da ira do amante da mãe, levando-o para um exílio. No regresso, Orestes socorre-se de um subterfúgio para não ser imediatamente reconhecido, que levará a irmã a um desespero  profundo que só se mitiga com a descoberta da verdade. O destino segue o seu caminho, e Orestes vingará a morte do pai assassinado a mãe, lavando com o sangue da mulher que o deu à luz a honra da família Átrida. Ao contrário de Ésquilo, que na sublime trilogia Oresteia nos mostra como a obrigação do lavar da honra conduz a mais tragédias e remorsos, em Sófocles este matricídio é mostrado como o necessário ponto final que libertará Electra do opróbrio. Não haverá aqui Erínias que atormentem o vingador.

Em Filoctetes, o jovem guerreiro Neoptélemo, filho de Aquiles, tem de cumprir uma missão espinhosa: cumprindo as ordens de Ulisses, montar um ardil que obrigue Filoctetes a regressar aos combates na Tróade. Este é um homem amaldiçoado, mordido por uma cobra como castigo divino, cuja ferida nunca sara, deitando um cheiro nauseabundo que ninguém suporta. Foi abandonado pela frota grega numa ilha deserta, onde sobrevive isolado numa caverna, o que não o torna nada predisposto a regressar à guerra. Tudo o que quer é uma oportunidade de regressar a casa, e parte daí o ardil de Ulisses. Este sabe, por via dos oráculos, que as flechas mágicas de Hécules que Filoctetes detém são uma das chaves para a vitória sobre os troianos, daí tornar-se necessário encontrar uma forma de o levar para o cerco de Tróia. Enganar Filoctetes com um suposto resgate para casa, que na verdade é um rapto para o obrigar a ir para a batalha, é o plano, mas Neoptélemo não se sente confortável com a mentira, acabando por desobedecer a Ulisses e a contar a verdade a um Filoctetes que, percebendo o ardil, mergulha no desespero. O compromisso de Neoptélemo com a honra acabará por ser recompensado, quando o próprio Hércules se manifesta, e o insta a acompanhar Ulisses ao campo dos gregos, mostrando-lhe que essa ação irá expiar a maldição divina que pesa sobre ele.

A humanidade dos heróis gregos é aqui mantida numa posição de absolutos, de compromisso com a honra que ultrapassa laços filias ou de obediência aos reis, mesmo que isso lhes custe o que têm de mais precioso.