quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Starting from Scratch


Andrea Marcolongo (2022).  Starting from Scratch: The Life-Changing Lessons of Aeneas. Nova Iorque: Europa Compass.

O que me fascina nos clássicos, para além da sua influência basilar na nossa matriz cultural, é a forma como nunca se esgotam. Novas gerações trazem diferentes olhares sobre palavras escritas há milénios, redescobrindo-as, reforçando com os conhecimentos da investigação histórica, ou enriquecendo com novas visões (por vezes, empobrecendo, quando as interpretações seguem matrizes ideológicas).

Neste longo ensaio, visitamos um poema que se tornou um dos grandes épicos da antiguidade clássica. Partindo do substrato grego de Homero, o poeta romano Vergílio liga a história mitificada da Roma imperal com as epopeias da Ilíada, reclamando para os romanos a continuidade da mítica era de ouro grega. Fá-lo através do périplo de Eneias, um troiano sobrevivente à hecatombe da destruição da sua cidade, que, com um grupo de sobreviventes, segue num périplo mediterrânico até arribar às costas itálicas e tornar-se o fundador dos reinos que, seguindo o mito de Rómulo e Remo, deram origem a Roma. 

Eneias é um heói relutante, que segue a missão de fundar as bases de um novo império, mas que no seu íntimo, o que mais deseja é um regresso ao passado, aos tempos em que vivia com a mulher e filhos na Tróia de funesto destino. Tendo perdido o que mais almeja, segue um destino de refugiado, de missão quase divina de plantar a semente da civilização grega na raiz dos bárbaros latinos. De tal forma este destino é inescapável, que quando confrontado com a oferta de amor e poder em Cartago, sob a forma da paixão de Dido, não cede e segue o seu destino, tornando esta rainha apaixonada numa das grandes figuras femininas trágicas da antiguidade. 

O ensaio de Marcolongo não se fica pela análise à narrativa. Enquadra o texto no contexto histórico romano, como poema épico com objetivos políticos, embora seja redutor considerar a Eneida como panfleto político para apoio do imperador Augusto. Fala-nos das geografias do poema (e é aqui que percebemos a profunda ironia vergiliana de através da Eneida, considerar que a luz grega iluminou os selvagens latinos e permitiu-lhes o grandioso império), das suas técnicas de escrita. Fala também das visões sobre o poema, e o autor, ao longo da história. Aqui as coisas tornam-se ainda mais interessantes. 

Cada leitor acrescenta a sua interpretação, e algumas são muito curiosas. Nos tempos do fascismo, o regime de Mussolini apropriou-se da Eneida como grande mito fundador e legitimador do fascismo italiano. Um aproveitamento errado, que teve como óbvia reação uma certa relutância com o poema, e o poeta. Diria que por cá, a promoção nacionalista do Estado Novo que, entre outros, apropriou os Lusíadas, teve efeitos similares. Mas entre os vai-véns do gosto, das marés de admiração e rejeição, nada bate os tempos da idade média. Algumas interpretações liberais de alguns versos viram na obra uma antecipação da vinda de Cristo, e a admiração cristã pelo poeta levou-o a ser considerado um santo, embora nunca tenha chegado a ser canonizado. Confesso, altares às relíquias de Vergílio foi algo que me surpreendeu nesta leitura, que nos mostra a importância da literatura clássica, e como esta nos influencia de formas que nem sempre são as mais esperadas.