John Cann (2017). Plano de Voo África – O Poder Aéreo Português na Contrassubversão 1961-1974. Alfragide: Comissão Histórico-Cultural da Força Aérea.
Não temos uma relação fácil com alguns aspetos da história recente. A memória é viva, e as feridas e traumas ainda se fazem sentir. Nem sequer sabemos bem como designar este momento da história portuguesa, se guerra do ultramar, colonial ou de libertação. É habitual que usar estes termos revele à partida viés ideológico, que impede uma discussão franca sobre o tema. E, com isso, perdemos todos, porque o discurso público fica-se nos extremos, e não se olha para a complexidade maior do tema.
Este livro mergulha-nos a fundo nas guerras coloniais travadas pelos portugueses nas suas colónias africanas. Foca-se no papel que a Força Aérea teve no conflito. A tese do livro é a de que a aviação teve um papel fundamental para travar ofensivas e controlar as guerrilhas, mesmo nos territórios mais difíceis da Guiné. Demonstra-o, com uma recolha histórica que passa pela memória e acervo documental de ex-combatentes de ambos os lados, relatórios e documentação histórica. É um trabalho de fôlego, detalhado, uma crónica das operações de contra-guerrilha levadas a cabo por este ramo das forças armadas (há mais dois livros, dedicados ao exército e marinha).
O que sobressai é a forma como a Força Aérea cumpriu uma missão violenta, em teatros de operação vastíssimos, com uma permamente escassez de meios. Fê-lo de formas criativas e inteligentes, adaptando as suas táticas à realidade do terreno, procurando aeronaves capazes de suportar as exigências dos territórios, e levando-as aos seus limites. Há neste livro histórias de brilhante adaptação, coragem e tenacidade. E assim percebemos um dos aspetos mais intrigantes da história portuguesa destes tempos: como é que um país relativamente pobre e pouco industrializado conseguiu suportar uma guerra em três zonas de África, durante mais de uma década.
Convém recordar que toda esta capacidade foi direcionada ao debelar de forças que, quaisquer que fossem os seus posicionamentos ideológicos, procuravam algo de legítimo - a autodeterminação dos seus países. E que esta guerra aconteceu pela cegueira ideológica do Estado Novo, incapaz de perceber os ventos de mudança do pós-guerra, inventando lógicas para justificar o injustificável. Neste quadro, as forças armadas cumpriram o seu dever, as missões com que foram incumbidas. E que, apesar dos sucessos e percalços, se resumiam ao manter do insustentável, esgotando os parcos recursos do país para manter uma guerra impossível de ganhar, anacrónica.
Este é um livro de história militar, que se afasta de perspetivas políticas e ideológicas. Não foge dos factos elementares, do absurdo de uma guerra por manutenção de colónias, embora mostre que no terreno, a situação política era pouco linear. Mas o seu foco está nas operações, nas diversas missões em que as capacidades aéreas foram envolvidas. Devo dizer que o quadro final revela uma enorme competência dos militares, com meios parcos e envelhecidos. Fizeram, bem, o que lhes pediram. Não podemos é esquecer que o que lhes pediram, foi o esmagar da liberdade e autodeterminação de povos autóctones.