terça-feira, 10 de outubro de 2023

O Navegador da Passagem


Deana Barroqueiro (2023).  O Navegador da Passagem. Queluz de Baixo: Manuscrito.

Confesso-me apreciador das ficções históricas desta escritora. O que mais seduz é o equilíbrio entre erudição histórica, visão crítica e sentimento de aventura patente nos seus livros. Percebi isso com o monumental Corsário dos Sete Mares, que transforam a Peregrinação de Fernão de Mendes Pinto numa aventura que nos deixa a pensar nas glórias e tragédias das odisseias portuguesas no Oriente.

Em O Navegador da Passagem, Deana Barroqueiro leva-nos a conhecer a figura de Bartolomeu Dias, o navegador responsável pelo dobrar do Cabo da Boa Esperança, pisando pela primeira vez o extremo da África e mostrando que era possível navegar da Europa à Índia contornando o continente africano. A escritora não se contenta apenas com essa saga, e cria um romance de aventura com sabor amargo, que salta constantemente entre duas das viagens de Dias: o dobrar do Cabo, e a armada da Índia de Pedro Álvares Cabral, que tropeçou no Brasil (um daqueles acasos que dificilmente foi um real acaso).

Este constante saltitar entre tempos e espaços torna a leitura um pouco confusa nas primeiras páginas do livro, mas depressa nos habituamos à viagem. E somos mimados com uma extraordinária reconstrução literária da época dos descobrimentos, onde o rigor histórico se cruza com um enorme prazer na visualização desses tempos de antanho. Tanto seguimos pela costa africana, descobrindo S. Tomé, Mina, os reinos do Congo e os povos à altura desconhecidos do que se veio a tornar a África do Sul. E tanto atravessamos o atlântico num longo desvio à carreira da Índia, entre as temiveis calmarias do alto mar, os primeiros contactos com os nativos sul-americanos, e a reconstituição da primeira missa em solo brasileiro. A capacidade descritiva da escritora é de um rigor extraordinário, revela um profundo conhecimento da época que retrata, e consegue fazê-lo de forma fluida na narrativa.

O livro não foge a uma visão crítica sobre os Descobrimentos. A visão não é dourada, de exaltação de feitos gloriosos. A dureza da vida nas caravelas é retratada de forma impiedosa, e as injustiças da busca pelos lucros da África e oriente são também mostradas sem floreados. A realidade da escravatura, um dos incentivos económicos à expansão portuguesa, é mostrada sem filtros, sendo um dos elementos centrais da narrativa. 

Estas obras de Deana Barroqueiro são uma excelente forma de meditar sobre a história portuguesa na era dos descobrimentos. Por detrás da aventura literária está o conhecimento histórico, e este tipo de ficções são uma forma prazeirosa de aprofundar o que se sabe sobre a nossa história.