quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018
Life on Mars
Parece mau photoshop, por isso deve ser real, comenta-se. Dos objetos que poderíamos esperar ver em órbita, um carro descapotável é talvez dos mais improváveis. No entanto, foi essa a carga que o foguetão pesado Falcon Heavy da Space X lançou ontem, para uma órbita em direção à cintura de asteróides. O destino original era Marte, mas parece que os motores do módulo orbital funcionaram bem demais. Entre as imagens fascinantes do lançamento, fomos surpreendidos com uma especialmente inaudita: um carro em órbita, com um boneco vestido com fato de astronauta, don’t panic no ecrã do tablier, David Bowie a cantar Life on Mars no auto-rádio.
Piada geek, golpe publicitário, ação inconsequente dos engenheiros de uma empresa que se assume como revolucionária no domínio da exploração espacial? Artefactos lançados ao espaço não costumam ser tão frívolos, ou são aplicações tecnológicas ou objetos com forte simbolismo. Descapotáveis vermelhos não são algo que se enquadre nessas categoria. Numa história de exploração espacial cheia de marcos reverentes, lançar um carro para o espaço parece muito absurdo, face às primeiras pegadas na lua ou à memória humana a bordo das sondas espaciais que se tornaram os primeiros artefactos humanos a ultrapassar as fronteiras do sistema solar.
Há um óbvio lado de marketing nisto. Lançar um Tesla para o espaço é puro marketing viral, e tendo em conta que foi lançado como carga inerte num voo de testes, é capaz de sair mais barato do que uma campanha publicitária. A ideia até pode ter sido lançada por piada, mas de certeza que alguém se lembrou que poderia dar um excelente anúncio. O lado de piada geek é mais notório, Elon Musk cultiva uma aura de génio nerd, tão à vontade com capital de risco e motores de foguetões como com referências reverentes à cultura de ficção científica. Astronautas, referências a Douglas Adams num carro que vai à boleia de um foguetão, definitivamente um to boldly go where no car has ever gone before, ao som de Bowie. Cultivar auras é algo que Musk faz muito bem. Notem a forma como consegue projetar a imagem da Space X como desbravadora de fronteiras, quando os lançamentos para o espaço são hoje bastante rotineiros (embora não no domínio do setor privado, reconheça-se).
Não deixa de ser altamente simbólico que uma empresa que se dedica a tornar mais barato, logo mais acessível, o acesso ao espaço, tenha colocado um automóvel em órbita. Especialmente se recordarmos que Musk, o seu dono, também fabrica automóveis e anda a fazer umas experiências com túneis e mobilidade pessoal. O carro é o grande símbolo da mobilidade libertadora do século XX, que refez paisagens de naturais a riscadas por miríades de estradas, condicionou o urbanismo, redefiniu a economia global e se tornou marco do desenvolvimento económico, como objeto de desejo representativo da ascensão à classe média. Um boneco ao volante de um descapotável com o planeta em fundo bate aos pontos os milhares de anúncios de espaços naturais amplos, com um veículo a sulcar a imensidão, símbolo do desejo de liberdade evocado pelo automóvel.
O momento mais impressionante do voo de ontem foi a aterragem em sincronia dos foguetões auxiliares, normalizando a sua reutilização. Mas foi a imagem do descapotável vermelho a passar pelo nosso planeta, ao som de Life on Mars, que captou os corações. O meu não foi excepção. O que irão pensar os futuros exoarqueólogos deste estranho artefactos à deriva na direcção da cintura de asteróides? O grande símbolo da hipermodernidade dos primórdios do século XXI, em que bilionários geeks se divertem a disparar carros para o espaço só porque, acima de quaisquer outras razões, o podem fazer?