quarta-feira, 17 de junho de 2015
Ghost Fleet
P.W. Singer, August Cole (2015). Ghost Fleet. Nova Iorque: Eamon Dolan/Houghton Mifflin Harcourt
Este é um daqueles livros que consegue ser ao mesmo tempo estupendo e medíocre. Estranha combinação, eu sei, mas se o lado especulativo informado do livro é fantástico e certeiro, como romance é medíocre, previsivel e superfícial. A especulação agarra o leitor, apesar do empecilho literário. O analista e ensaísta P.W. Singer, autor do interessante Wired For War, juntou-se a August Cole para escrever este romance de ficção especulativa que faz lembrar os clássicos da ficção científica que imaginavam guerras futuras.
Em vez de optar por uma análise que extrapola tendências tecnológicas e geopolíticas contemporâneas, os autores seguiram o caminho de uma novela que é empolgante pelo conceito mas desaba na estrutura. Fieis à técnica de escrita comercial de múltiplos pontos de vista, seguimos o percurso de diferentes personagens cujas peripécias as levam ao centro das várias linhas narrativas. Só que estas são meros peões no xadrez da história, autómatos literários superficiais que seguem percursos previsíveis.
É no lado especulativo que este Ghost Fleet deslumbra. Nele, os autores constroem um elaborado e plausível cenário de guerra futura, extrapolando as correntes tendências geopolíticas e tecnológicas. Estamos na segunda década do século XXI, com o mundo a recuperar de mais uma crise financeira, desta vez despoletada por terroristas islamistas que detonam um engenho nuclear sujo na Arábia Saudita e com isso provocam um colapso económico global. A hegemonia americana está em erosão, e uma nova China assume cada vez mais o seu papel como potência global. As transformações sociais trouxeram o colapso do regime comunista, e o pais transformou-se numa ditadura capitalista onde os militares e os grande conglomerados económicos se uniram no poder. Como a contemporânea Singapura, mas à escala continental. Decadentes, os Estados Unidos continuam no entanto como um inimigo formidável, o que não impede os chineses, com algum auxílio russo, de lançar um ataque devastador. No como está um dos grandes voos especulativos do romance. Singer olha para as tecnologias de hoje, lasers, canhões electromagnéticos, caças de quinta geração, coligações supra-nacionais em rede, drones, internet das coisas, pesquisa científica de ponta, e une-as numa especulação coesa sobre um conflito plausível que se caracteriza por rapidez fulminante. O romance começa com uma derrota americana no pacífico, graças a um ataque surpresa russo-chinês que recorre a todos os meios para enganar os adversários. Os primeiros tiros são disparados por caças russos, cuja aliança é mantida em segredo com conflitos fronteiços na Manchúria. Com os americanos focalizados na ameaça chinesa, caças de quinta geração russos penetram no espaço aéreo japonês e neutralizam as bases americanas no Japão com bombas termobáricas. Os porta-aviões e submarinos nucleares, os navios mais importantes das esquadras de combate americanas no pacífico, são afundados por mísseis hipersónicos capazes de localizar a radiação de Cherenkov emitida pelos reactores nucleares. A maior surpresa virá a norte, quando nos portos das ilhas havaianas cargueiros comerciais chineses começam a descarregar drones e tanques, enquanto nos aeroportos voos comerciais se revelam cheios de tropas invasoras. A supremacia espacial americana é aniquilada com tiros certeiros de lasers ocultos na estação espacial chinesa, que destroem todos os satélites de comunicação e posicionamento geográfico. Resta ainda outra arma, mais insidiosa. As mais modernas armas de combate americanas deixam de funcionar, postas fora de combate por malware infiltrado nos elementos electrónicos chineses de baixo custo incorporados nos navios e aviões de combate de custos milionários.
Humilhados, com as ilhas do Hawai ocupadas, a sua presença no espaço anulada, e as tecnologias de que dependem tranformadas num perigo de segurança pelos componentes chineses infiltrados por malware, os Estados Unidos enfrentam ainda colapsos económicos, quando as suas maiores empresas se recusam a colaborar nos esforços de guerra, mostrando serem mais fiéis aos interesses dos accionistas transnacionais do que aos governos. Sendo um romance escrito por americanos, percebemos que a história não acaba na derrota. Um dos muitos pormenores óbvios que tornam este livro num desastre narrativo.
O contra-ataque é outro voo de virtuosidade especulativa dos autores. O restauro do poderio industrial é possibilitado por takeovers de pequenos accionistas sobre os conglomerados, que se afadigam a produzir para o esforço de guerra. Claro que Singer não esquece aqui as tecnologias de impressão 3D. A dominância chinesa no ciberespaço é anulada por uma coligação entre techies de Sillicon Valley e o grupo amorfo que são os Anonymous, que vêem na ditadura chinesa um inimigo maior para a liberdade digital do que as agências secretas americanas. Para capturar a estação espacial um excêntrico magnata inglês decide transformar-se em corsário do espaço e recorrendo a uma nave orbital de turismo galáctico e mercenários, captura a estação espacial chinesa.
Singer detém-se com mais pormenor na frente militar. É evidente o seu deslumbre com o sistema de armamento centrado nas fragatas Zumwalt, que neste livro não passaram de um protótipo que se virá a revelar decisivo. Para contrariar o domínio tecnológico chinês recorre às frotas de aviões de combate e navios armazenados em depósitos (parte daí o título do livro, referência aos navios descomissionais ancorados numa base naval, conhecidos como Ghost Fleet), cujos equipamentos tecnológicos antigos são imunes à influência da ciber-guerra chinesa. Caças F15 e F16 podem não estar à altura dos caças de quinta geração russos e chineses, mas as frotas de drones de combate que se estendem em rede à sua volta. Rebeldes americanos fazem a vida negra às forças de ocupação chinesa nas ilhas havaians, inspirados na experiência prévia de alguns dos combatentes no Afeganistão. E drones são utilizados para tudo, desde ataque de combate a pombos-correio para distribuir mensagens sem passar pelas redes de telecomunicação infiltradas pelo inimigo. Com a NATO colapsada pela vontade da União Europeia de não participar na guerra, os americanos movem a sua influência para dar independência à Gronelândia e assim manterem aberta a passagem do noroeste, vital para transportar as suas forças atlânticas para o Pacífico após a inutilização do canal do Panamá por cargueiros chineses que embateram de propósito nas infraestruturas. É uma intrigante mistura de guerra assimétrica e tecnologia de ponta que Singer e Cole tecem neste voo especulativo.
Nada do que os autores aqui colocaram é imaginário. As inversões geopolíticas, a possibilidade do regime comunista chinês colapsar, sendo substituído por outras formas de autoritarismo, a emergência de novas potências militares são assuntos estudados por analistas. No lado tecnológico os autores metem-se com os suspeitos do costume: robots de combate, armas electromagneticas, combate orbital, redes de telecomunicação e ciberguerra. Afinal, nada menos se esperaria de P.W. Singer. Nestas especulações também sobressai uma forte crítica aos processos de globalização, com as diluições de capital e tecnologia que erodem as regras clássicas de actuação dos estados nação. Há aqui muito daquele espírito crítico americano sobre deslocalização e dependência das manufacturas chinesas, bem como das questões sobre os investimentos multi-milionários em sistemas de armas polémicos, caso dos famosos F-35, caças que depressa são postos fora de combate quando os sistemas GPS de que dependem são aniquilados e os mísseis e sistemas de controlo de tiro não disparam por estarem a ser controlados por chips comprometidos. O livro tem também uma certa nostalgia por guerras frias clássicas, entre grandes blocos de estados-nação, algo de intrigante quando vivemos em tempos em que as ameaças globais estão localizadas e vêem de insurgentes e grupos terroristas que se recusam a seguir as regras da guerra Westphaliana. Pequenos detalhes que dão interesse a uma obra que vale pela especulação informada e não pela qualidade literária. Romances sobre guerras futuras e visões históricas alternativas é coisa que por aí abunda, mas são raros aqueles que se centram em visões rigorosas de especulação.