É aquela tradição anual do Fórum Fantástico, o painel das escolhas literárias do ano do João Campos, Cristina Alves, Rogério Ribeiro e eu. Como sempre, deixo aqui a minha lista dos livros que, neste ano, mais me marcaram.
Ficção Científica, Fantástico, Horror
Agustina Bazterric: The Unworthy
A escritora argentina, que se destaca no conto cruel, cimenta sua reputação global com o livro The Unworthy, após o sucesso de Tender is the Flesh, mostrando sua capacidade de variar temas. Esta nova obra é um mergulho provocador num mundo pós-apocalíptico e em ruínas, onde a protagonista, refugiada num convento, se vê na verdade aprisionada numa seita profundamente violenta. The Unworthy oferece uma leitura implacável e desagradável pelas ideias de violência e subjeção que a autora constrói, apesar da sua escrita ser elegante.
Matos Maia: A invasão dos marcianos: + 3 "Fantasías radiofónicas"
O texto recorda a lendária emissão radiofónica de A Guerra dos Mundos de Orson Welles e a proeza repetida em Portugal por Matos Maia, destacando que o sucesso de ambos se deveu à capacidade de adaptar a narrativa à gramática específica do meio radiofónico. O livro em questão compila o guião da adaptação de Matos Maia, juntamente com outras peças radiofónicas do autor, como Quando os Cientistas Sonham e Um Naufrágio... no Sara. Estes textos revelam Matos Maia não apenas como um grande radialista português, mas também como um raro criador de obras de ficção científica que usou a rádio como uma estrutura narrativa.
M.S. Rosa: Da Luz Da Qual Nasceste
A aquisição deste livro no Festival Contacto foi motivada pela autora, cujos vídeos no TikTok considerava encantadores, demonstrando o apoio da comunidade portuguesa a novas vozes no fantástico. O livro surpreendeu o leitor ao afirmar uma voz pessoal forte, criando um mundo ficcional próprio e bem elaborado, que se afasta das habituais fantasias medievalistas ou de simples pastiches. Apesar do enredo linear, o livro ganha uma dimensão inesperada e profunda ao desconstruir a premissa de amor do ritual, transformando-se numa metáfora sobre desequilíbrios amorosos e relações tóxicas, e integrando de forma consciente temas não-heteronormativos e ativistas.
Kaliane Bradley: The Ministry of Time
O romance de Kaliane Bradley inicialmente ignora os paradoxos temporais, focando-se numa tradutora numa Londres futurista que consegue um emprego misterioso num departamento governamental. A sua missão chocante envolve acompanhar expatriados resgatados do passado antes de morrerem, o que contrasta os seus costumes com a modernidade, servindo como uma metáfora sutil sobre migração e a manipulação de deslocados. A narrativa revela-se mais complexa, culminando na descoberta de que toda a história é parte de um ciclo de paradoxos temporais manipulados por uma versão futura da protagonista para alcançar um resultado desejado.
Steven L. Peck: A Short Stay in Hell
O conto é profundamente influenciado por "A Biblioteca de Babel" de Borges, estendendo a ideia de um lugar que, embora pareça um paraíso para bibliófilos, é na verdade o inferno. A condenação de um homem religioso, que acreditou na fé errada, não é um tormento tradicional, mas sim ser enviado a uma biblioteca infinita. Para alcançar o paraíso, o condenado recebe o desafio de encontrar o livro que conte a história da sua vida, uma tarefa impossível na vasta e monótona biblioteca, onde a única certeza é que nada mudará ao longo dos milénios.
Sierra Greer: Annie Bot
Esta novela de ficção científica, Annie Bot, revisita o tema do andróide feminino — comum em contos clássicos como Olympia e L'Éve Future — para explorar a fantasia masculina de ter uma mulher dócil e submissa, mas com um mergulho corajoso na violência sexual e doméstica. O livro centra-se na relação desequilibrada entre um homem e a sua andróide de companhia topo de gama, cujas funções de IA generativas lhe permitem desenvolver lentamente uma consciência e autonomia. A história funciona como uma metáfora pouco subtil sobre o abuso, a dominação e as relações tóxicas, onde a autonomia da andróide é constantemente ameaçada pela possibilidade de ser revertida pelos comandos de obediência do seu dono, refletindo o ciclo de violência doméstica.
Pedro Medina Ribeiro: A Serpente no Sótão
Esta coletânea de contos góticos de Pedro Medina Ribeiro é uma excelente surpresa que, embora beba do estilo clássico das histórias de assombrações, não se limita a ser um pastiche. O autor recupera a forma elegante e o tom literário do género, transportando o leitor para um universo de bizarrias sobrenaturais e o temor do escuro. A modernidade está sempre presente nos contos, mesmo naqueles que se passam no século XIX, demonstrando o domínio do estilo por Medina Ribeiro.
Kevin J. Anderson: Nether Station
Este livro é uma mistura perfeita e empolgante de Hard SF e horror cósmico lovecraftiano, seguindo as desventuras de uma investigadora especializada em buracos negros que se junta a uma expedição para estudar um misterioso wormhole na orla do sistema solar. Após uma longa viagem, a equipa de exploração depara-se com descobertas mirabolantes, como cadáveres alienígenas mumificados e arquitetura não-euclidiana que gradualmente mergulham a tripulação num crescente inevitável de horror e loucura. O ritmo imparável da narrativa revela uma guerra cataclísmica contra criaturas de horror cósmico, banidas para os espaços intersticiais e despertadas pela travessia do wormhole, misturando com mestria o mythos de Lovecraft com a ficção científica clássica.
Hanna Bervoets: We Had to Remove This Post
Esta novela curta e dura aborda os efeitos psicológicos e emocionais da moderação de conteúdos na economia digital, contando a história ficcional de uma jovem que lida diariamente com o pior do ser humano. A narrativa explora a dureza deste trabalho, caracterizado por baixos salários, longas horas e falta de apoio psicológico, que expõe os trabalhadores a violência extrema e traumas profundos, dos quais a sociedade prefere desviar o olhar. O livro surpreende no final, ao revelar que a espiral depressiva e traumática não se refere à ex-companheira da protagonista, mas sim à própria personagem, cuja visão do mundo foi irremediavelmente corrompida, levando-a a perder a sua humanidade.
Banda Desenhada
Maxwell Prince, Martin Morazzo: Ice Cream Man
Em formato episódico, as desventuras onde pontua um infernal vendedor de gelados, o trabalho de Maxwell Prince e Martin Morazzo tem nos dado das histórias mais intrigantes e arrepiantes do horror contemporâneo. O resultado da dupla é uma das mais brilhantes séries de BD da atualidade. Cada novo número surpreende, pelo experimentalismo narrativo, grafismo limpo e visão única do terror. Acho que nunca li nenhuma série em que todos os números surpreendem.
Miguel Gonçalves, Damián Connelly: Nightmare Tales: A Horror Comic Anthology
Uma excelente surpresa, esta edição recentíssima (saiu em maio deste ano). Colige histórias curtas de terror muito puro e duro, com uma assombrosa ilustração a preto e branco. Miguel Gonçalves assina as histórias tenebrosas, cada qual um curto conto bem desenvolvido e eficaz. O trabalho gráfico de Damien Connelly complementa de forma excelente as histórias. O estilo é fortemente expressionista e implacável com o leitor, num efeito final muito belo sobre o leitor.
Max Bardin: Peter Pank
Fãs portugueses mais velhos recordam a revista brasileira Animal, um fenómeno underground que, nos anos 80 e 90, trazia o melhor da BD europeia e brasileira de vanguarda, com um conteúdo adulto e sem compromissos. Nas suas páginas, brilhavam personagens radicais como o robô Ranxerox, Squeak the Mouse e, em particular, Peter Pank, do espanhol Max Bardin. Bardin recriou o esqueleto de Peter Pan na perspetiva da rebeldia punk dos anos 80, transformando a Terra do Nunca numa "Terra dos Punks" habitada por toxicodependentes e ninfomaníacas, onde Peter Pank é um anti-herói assumidamente violento e punk. Esta edição de Peter Pank é um marco incontornável da iconoclastia underground da BD europeia, com o seu humor corrosivo e um traço acutilante.
Não Ficção
Onésimo Teotónio Almeida: O Século dos Prodígios: A Ciência no Portugal da Expansão
Com prosa lúcida, Onésimo Teotónio Almeida aborda uma lacuna na história da ciência, argumentando que os Descobrimentos portugueses exigiram e promoveram um pioneirismo científico concertado na geografia, matemática e astronomia, séculos antes do Iluminismo europeu. O autor demonstra, através de tratados náuticos e matemáticos da época, o surgimento de um espírito crítico que rebatia a ciência escolástica em favor da observação empírica e da análise das novas realidades trazidas pela navegação. Este "dealbar do questionar científico" português não foi sustentado, o que explica o esquecimento do contributo ibérico para o método científico, cujas razões são analisadas no final do livro.
André Brun: A Malta das Trincheiras
A história do Corpo Expedicionário Português (CEP) na Primeira Guerra Mundial, marcada pela precária preparação e pelo abandono dos soldados por uma jovem república, é pouco discutida em Portugal por não ser honrosa, sendo La Lys o seu momento mais trágico. O romance do participante André Brun, comandante de infantaria, não segue uma estrutura linear, mas sim reúne vinhetas de memórias que registam a vida e as ações dos soldados portugueses nas trincheiras da Flandres. O livro, embora escrito com um tom patriótico e militarista, é um documento acutilante que humaniza a experiência dos seus homens, apelidados de "lãzudos", destacando o fatalismo, a coragem e as interações no quotidiano da guerra.
Ryszard Kapuściński: Andanças com Heródoto
O livro é um profundo diálogo mental que entrelaça as experiências de viagem do jornalista Kapuściński durante a segunda metade do século XX com as de Heródoto, o "pai da História", revelando um fio contínuo de humanismo ao longo da história. Kapuściński, inexperiente e enviado a países periféricos durante a Guerra Fria, como a Índia, Egito e nações africanas recém-independentes, usa as suas memórias para retratar um passado recente já desaparecido. O jornalista estabelece um complexo diálogo com o viajante da Antiguidade através da obra de Heródoto, que o acompanha, notando um relativismo comum na busca por compreender as geografias, os povos e os seus costumes, e a verdade condicionada pela perceção de quem conta a história.
Alec Nevala-Lee: Astounding: John W. Campbell, Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, L. Ron Hubbard, and the Golden Age of Science Fiction
Esta biografia de John W. Campbell, lendário editor da Astounding, assume o desafio de humanizar figuras de charneira da FC, reconhecendo o seu contributo fundamental para o género, mas expondo as suas falhas pessoais, como racismo e misoginia. O trabalho editorial de Campbell foi crucial para guiar escritores como Isaac Asimov e Robert Heinlein a focar-se na especulação científica, elevando a FC das simples histórias de aventura, apesar das limitações estéticas de tempo. Nevala-Lee traça ainda o retrato complexo das relações pessoais e literárias entre Campbell e seus autores, arrasando L. Ron Hubbard e revelando a cultura tóxica que contaminou o fandom desde o seu início.