terça-feira, 9 de abril de 2024

Heliogabalo: Ou o Anarquista Coroado


Antonin Artaud (1982).  Heliogabalo: Ou o Anarquista Coroado. Lisboa: Assírio e Alvim.

Não conheço o suficiente sobre história romana para me pronunciar com certezas, e do que a internet não precisa é de mais um opinador que conhece mal aquilo sobre o que opina. Mas fico com a sensação que este infame imperador romano, apontado como um marco de decadência, vício e lascividade excessiva, ficou imortalizado na história pela visão dos seus inimigos. Quando aqueles que escrevem as crónicas e as histórias são os que beneficiam com a queda do imperador cujos feitos e comportamentos registam, não é difícil perceber que a história contada pelos vencedores talvez não seja a história total.

Não que preocupações com rigor histórico sejam fundamentais para este texto. É típico Artaud, um dos grandes escritores malditos do século XX, e a sua visão de Heliogabalo compraz-se na decadência, isso nota-se logo nos primeiros parágrafos encharcados de sémen, que traçam a origem da dinastia que o decadente rapaz imperador cessou.  Este não é uma crónica rigorosa, mas sim um ensaio entre o místico e o surreal, com muitas incursões aos lados negros da ambição humana, das vontades desmedidas e dos choques misticistas das religiões solares.

O texto compraz-se num certo chafurdar na lenda e na decadência, como seria de esperar de um escritor maldito. É essa a função surreal, de agitar, inqueitar e chocar.

Fazer esta leitura, que encontrei nos acasos dos alfarrabistas, em pleno século XXI deixou-me a pensar noutras ideias. Não consigo afastar a sensação da impossibilidade de edição de um livro destes, hoje. Suspeito que se um escritor com tendências surrealistas apresentasse um texto desta jaez a uma editora, seria rejeitado por ser demasiado polémico, chocante, ou por não se adequar ao que os conselheiros culturais dos editores apontam como o correto. E, caso encontrasse edição, seria crucificado pela linguagem que usa, tão arredada quer do comercialismo acessível e do conveci0nalismo progressista que se tornou a norma aparente.

Isto soa muito a boomer rant, embora não o pretenda ser. Apenas me questiono se os grandes escritores transgressivos do século XX, se os Artauds, Henry Millers, William Burroughs ou outros cuja prosa não tem contemplações teriam, hoje, o espaço que tiveram (e note-se que sempre foram considerados malditos, a evitar, escorraçados da sociedade digna e conservadora). Seria simplista entrar no discurso boomer/woke de censuras culturais, há outros factores em jogo. A excessiva comercialização da cultura implica que as obras sejam desenhadas para agradar aos compradores, e o que choca profundamente, não vende (embora o que choque noutros sentidos seja um chamariz). A extremação das ideias, trazida em parte pela cultura digital, entre a vociferidade dos trolls e dos aspirtantes a influenciadores que buscam o absoluto, mesmo que falso, para atrair o máximo de atenção também diminui a tolerância social para visões incómodas. 

Quando as culturas de transgressividade sáo cooptadas como mercado comercial, ou extremadas em guerras culturais intelectualmente pobres e degradadoras da abrangência de ideias, que espaço resta para quem se sente inquieto e procura visões além das normalidades, convenções, conservadorismos e pressões grupais?