Otessa Moshfegh (2022). Lapvona. Londres: Penguin Press.
Há livros que são chocantes, que se esforçam ao máximo por chocar o leitor, exaltando o pior, exacerbando a violência, chegando ao grand guignol. E há livros que são implacáveis, que desorientam e atormentam o leitor da primeira à última página, sem cair em litanias da desgraça mas pela forma desoladora como nos apresentam a alma humana. Lapvona é claramente um desses, uma obra sem piedade para com os seus temas e personagens, desoladora, um choque de ar fétido que não nos deixa indiferentes.
Ler Lapvona recorda aquela velha máxima (assente numa visão pessimista e redutora) da vida medieval como nasty, brutish and short. Nisto, consegue ser o antídoto perfeito às luminosas e delicodoces fantasias medievalistas cheias de princesas e magia que dominam o espectro da fantasia nestes dias, embora o livro não tenha sido escrito com estes propósitos. O mundo de Lapvona é um mundo medievalista retardado, de vileza, ignorância, superstição, cobardia, violência e concupiscência. Não há virtudes ou promessas de salvação, apenas um eterno ciclo de chafurdar no pior da alma humana, ao qual nenhum dos habitantes daquela terra fértil se esquiva.
Este é um romance-périplo, não por espaços e geografias como habitual, mas pela sordidez humana. Seguimos as curiosas aventuras de Marek, um adolescente deformado cuja mãe o tentou abortar, que vive com o pai que conheceu a mãe ao violentá-la na floresta. O nascimento da criança deformada irá permitir à mulher, tornada muda por lhe arrancarem a língua, fugir. Marek cresce pensando que a mãe está morta, num ambiente familiar de violência contínua, e, perversamente, onde a violência o fascina, por ser a única forma de sentir o contacto filial. É através de Marek que iremos conhecer alguns dos restantes habitantes da terra. Jakob, o seu pai, violador de jovens raparigas que encontra na floresta, pai extremoso na forma amorosa como espanca o filho semi-enjeitado, mas estranhamente carinhoso com o rebanho de ovelhas que apascenta, chorando sempre que vende os cordeiros para abate. Ina, a velha cega mas conhecedora de ervas e mezinhas, que vive à parte da sociedade mas amamentou todas as crianças da aldeia. Barnabas, um padre que mal sabe ler a bíblia que tanto cita, desconhece todos os preceitos da religião em que guia os fiéis, e cujos sermões apenas exortam os fiéis a seguir fielmente as vontades do senhor feudal. Villem, o dono do castelo e senhor das terras, um nobre efeminado que se banqueteia no luxo enquanto extorque toda a riqueza das terras, com a sua corte de servos degenerados. Lispeth, uma rapariga que serve na casa senhorial, despersonalizada pela violência e abusos daqueles que serve, desprezando-os profundamente. Poderia continuar a listar personagens, mas creio que já perceberam o porquê da implacabilidade do romance.
Os destinos de Marek irão sorrir-lhe, ao provocar a morte semi-acidental do filho do senhor feudal. Uma morte que não incomoda nada o nobre, já que o filho não é dele, mas da ligação da esposa com um tratador de cavalos, até porque o nobre sempre preferiu outros tipos de prazer que não o feminino. Villem irá perfilhar Marek, tirando-o da pobreza extrema da aldeia e mergulhando-os nos luxos do feudo, que na verdade, não são verdadeiramente luxuosos, dada a sordidez da região. Entretanto, uma forte seca provoca a fome na região, levando os seus habitantes ao desespero e ao canibalismo. Seca essa que não se repercute no palácio, bem irrigado por reservatórios que açambarcam a água da região. Para lá da violência bizarra de contornos canibalistas, a seca extrema irá recuperar a mãe de Marek, fugida do convento onde se ocultou da aldeia e onde é explorada pelas freiras. Novamente violada pelo pai de Marek, encontra novo refúgio no castelo senhorial, onde se recusa a aceitar o primeiro filho, e acaba por casar com Villem. Este, sabendo que a rapariga está grávida, crê piamente na ilusão que a gravidez é virginal, e sonha com o engrandecimento do seu prestígio ao ser o pai de um segundo Cristo. Mas todos estes sonhos sórdidos irão descambar.
Não há remissão na violência intelectual deste livro. Todos os personagens, sem exceção, agem de acordo com os seus piores instintos. Não hesitam perante os extremos de violência, são impiedosos em todos os momentos. A sordidez das suas vidas, das pobres às luxuosas, assenta numa tremenda ignorância supersticiosa, onde tudo justifica relações de poder baseadas na violência e exploração. Lapvona é uma fantasia negra, uma longa metáfora do pior que a alma humana nos reserva. Um livro fascinante na sua negritude, daqueles a que não conseguimos virar a cara apesar da implacabilidade com que nos trata.