terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A History of Water


Edward Wilson-Lee (2022). A History of Water: Being an Account of a Murder, an Epic and Two Visions of Global History. Nova Iorque: Harper Collins.

É sempre curioso ler sobre a nossa história sob um olhar exterior, que nos dá diferentes visões sobre os acontecimentos e personalidades. Se bem que seria redutor ver este livro apenas na perspetiva portuguesa. Antes, o foco em duas personalidades da nossa história é um ponto de partida para uma análise de um momento chave na história global, que é simultaneamente o tempo da origem do colonialismo europeu, das raízes do iluminismo, e das guerras religiosas e políticas que viriam a moldar o continente, e o mundo. 

Wilson-Lee traça uma necessariamente curta biografia de duas figuras maiores do Portugal da era dos descobrimentos: Camões e Damião de Góis. Mas são biografias que só fazem sentido como parte de algo maior, demonstrativas das forças que estavam a moldar o mundo à época.

Apesar do seu peso cultural, Camões é o personagem secundário neste livro. O autor socorre-se dele para nos levar a pensar sobre a expansão europeia e as raízes do colonialismo em África e na Ásia. As aventuras e desventuras do poeta pelintra, sempre envolvido em problemas com a lei, e que entre  fugas, empregos e degredos se vê forçado a passar por algumas das sete partidas do mundo são, essencialmente, o enquadramento (ou melhor, a personificação) do choque de culturas entre os europeus e os asiáticos que se iniciou na época dos descobrimentos. Wilson-Lee é crítico, e observa que os nossos descobrimentos são um drama para os descobertos, que vêm as suas ordens políticas e sociais alteradas pelo embate com aventureiros europeus que procuravam acima de tudo enriquecimento pessoal, socorrendo-se de todos os meios para o fazer, desde os legais e respeitoso ao controle territorial, invadindo e conquistando, ao controle de pensamento através da expansão da religião cristã. Note-se que esta posição assenta numa visão da complexidade, quer das culturas e países, quer das relações culturais e económicas no mundo globalizado quinhentista, onde os portugueses apenas vieram, com a tecnologia naval, acrescentar novas rotas de trocas comerciais, reforçando-as face às antigas rotas com a força das armas. 

A personalidade de Camões, um eterno perdedor, que só após a sua morte viu reconhecido o seu génio, surge aqui como uma personificação dos paradoxos dos Descobrimentos, tanto uma época de descobertas de novas terras e culturas, como de aventureirismo ganancioso. E, também, na forma como estes acontecimentos foram mitificados para criar a ideia de uma superioridade cultural europeia, que justificava o domínio de povos e territórios. Wilson-Lee vê os Lusíadas nessas perspetiva, um poema que mitifica os feitos portugueses à luz da tradição da antiguidade clássica, enquanto rejeita a influência das culturas com que os portugueses contactaram.

Wilson-Lee olha com muito mais detalhe para a personalidade de Damião de Góis. Sente-se um académico dos dias de hoje, a admirar a vida de um congénere seu do passado. A vida do humanista, com muito menos peripécias do que a de Camões, mas nem por isso menos viajada, é vista pela lupa do autor como uma forma de nos falar das forças intelectuais que estavam a moldar a Europa da época. Por um lado, o progressismo religioso da Reforma, e por outro, o progressivo espartilho da contra-reforma. No meio, esmagado entre estes dois campos, visões moderadas de equilíbrio e procura de uma maior liberdade intelectual, uma visão amarga face ao progressivo emergir dos radicalismos religiosos (que, por cá, nos deixaram o legado obscurantista da inquisição, e na europa, as guerras e perseguições religiosas).

Desconhecia o legado deste humanista português, e ao ler este livro, percebe-se o quão próximo Damião de Góis esteve de ser um dos grandes nomes da cultura europeia. Viajou, como académico e diplomata, por toda a Europa, foi discípulo de Erasmus, privou com a nata intelectual europeia da época, e deixou um legado bibliográfico muito vasto, para além das crónicas do reino, olhando para vários aspetos culturais europeus e africanos. 

No entanto, a visão é amarga, Damião de Góis personifica a esperança num mundo intelectualmente mais aberto, que acabará por ser esmagado pelas forças religiosas e políticas. É um símbolo de urbanidade, de uma ideia de unidade cultural europeia que ainda hoje, apesar dos esforços da integração europeia, teima em não persistir. 

Camões e Damião de Góis personificam dois aspetos trágicos da história global. Um, o dealbar dos colonialismos, da expansão e exploração de outros povos e terras, do nascente imperialismo. Outro, o difícil nascer do iluminismo, do sobrepor o conhecimento científico aos mitos religiosos, da defesa da liberdade intelectual e do respeito entre culturas, algo que hoje, apesar de imperfeito, é um dos nossos pilares civilizacionais. Nestas duas personagens portuguesas, Wilson-Lee encontra símbolos das forças que modelaram a história, e nos legaram o mundo de hoje. Um livro que nos surpreende pelas ligações que encontra entre geografias, personalidades, culturas, políticas e eventos.