José Gomes Ferreira (2009). Aventuras de João Sem Medo. Lisboa: Leya.
Fiquei cativado nos primeiros parágrafos deste livro peculiar, que desgraçadamente desconhecia. É uma lacuna tremenda, só agora ter pegado neste sublime clássico da literatura portuguesa, um livro um pouco ao contrário dos grandes clássicos da literatura. Não é pesado, portentoso, mas é complexo, sublime, e o que mais me surpreendeu, deliciosamente surreal. Tinha uma imagem diferente deste livro, tinha a impressão de que era um livro anti-regime dos tempos do estado novo. Há toques subtis (bem, não muito) desse aspeto, mas a obra é uma fábula surreal e não um drama.
João Sem Medo é um jovem inquieto com o seu destino, com a vida que lhe está destinada na aldeia onde vive, onde todos porfiam pela tristeza. E parte, pelos caminhos fora, escolhendo sempre os menos trilhados, descobrindo-se em terras estranhas com estranhos habitantes, vítima de forças que não compreende e se comprazem em brincar com as suas penas. E, ao longo das suas aventuras e desventuras, mantém-se fiel a si próprio, senhor do seu nariz, afirmando uma coragem que é no fundo um forte sentido prático, não cedendo a tentações ou desalentando perante adversidades. No fundo, a grande luta deste homem é a liberdade de ser e pensar, o não se sujeitar por conforto ou imposição, o manter viva a chama do espírito humano face ao conforto do conformismo.
A sucessão de episódios delirantes é constante. Estas aventuras são fábulas modernistas, onde a fantasia de outros tempos colide com os modos de viver e as tecnologias do século XX. Criado nos anos 30 como uma sucessão de episódios para uma revista infantil, as pérolas surreais que são estes contos não se esgotam num invocar de visões fabulásticas, nem num simples sucedâneo de peripécias. Há profundas observações morais e sociais nestas histórias, mostrando como a literatura infantil permite uma amplitude de liberdade de exploração que, num regime repressivo, outras formas não podem arriscar. A veia anti-conformista é muito forte, o lado moralista das histórias pende inevitavelmente para a libertação do indivíduo e a sua rejeição de sujeições. Tudo isto contido numa extravagante iconografia fantástica e surreal.