terça-feira, 29 de março de 2022

O Amigo da Morte


Pedro Alarcón (2007). O Amigo da Morte. Lisboa: Presença

Uma excelente surpresa, vinda das memórias de Jorge Luis Borges, cuja Biblioteca de Babel coligiu alguns autores mais obscuros e esquecidos de literatura fantástica. Neste O Amigo da Morte, dois contos do autor espanhol Pedro Alarcón são recordados. Pura literatura fantástica da primeira metade do século XIX, a sensibilidade é de forte romantismo, entre o lirismo e as emoções exacerbadas.

O Amigo da Morte, conto que dá título ao livro, é uma enorme surpresa. É, essencialmente, um conto romântico que nos leva à Espanha do final do século XVIII. Conhecemos Gil Gil, orfão, humilde filho de sapateiro que é educado por um conde, suspeitando-se que seja um seu filho ilegítimo. Com a morte do seu protetor, a viúva não perde tempo em livrar-se do bastardo, condenando-o a regressar à pobreza. O rapaz leva consigo as memórias da paixão impossível por uma jovem nobre. A vida nas ruas não lhe é clemente. Após uma doença, perde tudo, e só lhe resta o suicídio. É ao contemplar o veneno que lhe surge à frente a Morte, que, declarando-se arrependida de todo o mal que lhe causou, lhe mostra o caminho para regressar à sociedade e recuperar o seu amor. E, de facto, tal acontece, com ajuda da Morte, Gil irá recuperar a herança perdida, assumir o seu lugar na sociedade, e casar com a jovem que ama. 

É no momento do óbvio final feliz, de sensibilidade romântica, que a história nos tira o tapete debaixo dos pés. Somos, tal como o personagem, transportados pela Morte ao futuro, ao século XXIII, ao ano em que se dá o dia do juízo final. E nesse futuro a Morte revela a verdade a Gil: ele, de facto, suicidou-se, sendo pouco depois seguido pela amada, morta de causas naturais. A reunião destes dois espíritos apaixonados é impossível, a jovem ascende aos céus, mas por ser suicida, o rapaz é condenado ao oblívio. Resta a Morte, condoída com o destino deste par, rogar a Deus que lhe permita uma forma de redimir o pecado da alma de Gil. E cria assim toda a ilusão que sustenta o grosso deste conto, que é também um teste à honra e amor do rapaz. No final dos tempos, com o dedinho da Ceifadora, o amor acabará por triunfar.

É, de facto, surpreendente. Um conto que tem tudo de puro romântico, com aquele sangue na veia de almas torturadas, vira de repente e torna-se quase uma obra de proto-ficção científica com uma iconografia de gótico negro. Alarcón até se atreve a imaginar o destino das almas que, com o Juízo Final, regressam à vida. Os bem-aventurados ascendem ao paraíso, mas os restantes, em punição pelos seus pecados, são condenados a viver noutros planetas. A Morte surge como uma resignada força da natureza, que cumpre, relutante, o seu papel na ordem divina, e se atreve de vez em quando a condoer-se dos mortais que ceifa.

Claro, apesar destes elementos, este não é um texto de ficção científica, apenas um conto de romantismo fantástico que surpreende pelo seu final.   O livro também inclui um outro conto de terror, A Mulher Alta, uma obra mais convencional sobre uma estranha mulher idosa que parece assombrar um homem imediatamente antes deste receber notícias funestas sobre os seus entes queridos. Conto de fantasmagoria romântica pura, mas o que faz valer esta leitura é mesmo o surpreendente conto que lhe dá o título.