quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Tirano Banderas


Ramon Valle-Inclán (1990). Tirano Banderas. Lisboa: Editorial Teorema. 

Esta capa fulgurante e gritante abre-se para um romance igualmente fulgurante e dinâmico. Valle-Inclán leva-nos a Santa Fé da Tierra Firme, uma república sul-americana dominada pelo ditador que dá o nome ao romance. Rodeado pela sua corte de sicofantas, gere as inúmeras intrigas de um país cujos recursos naturais aguçam os apetites europeus e americanos, a economia é sustentada por emigrados espanhóis, dando um protagonismo inesperado ao embaixador de um reino a quem os agora independentes sul-americanos ainda chamam de pátria-mãe. Tem de se ver a contas com a esperada rebelião armada, excelente desculpa para se livrar dos opositores com fuzilamentos diários ao por do sol. Ou de aliados caídos em desgraça, se lhe der jeito. Um caudillo implacável, que assume o manto de defensor do povo, embora as condições deste não melhorem, exige obediência total e cega e não resiste aos caprichos. Previsivelmente, terá um final triste.

Com uma linguagem muito sintética e quase cinematográfica (não é a melhor comparação, dado que o escritor viveu na viragem do século XX), Valle-Inclán constrói uma notável opera buffa, com um humor ácido a salientar a forte observação social. É uma história de sicofantismo, cupidez, ambições desmedidas, violência casual, puro imoralismo. Não há inocentes nesta história, todos vivem e sobrevivem num constante jogo de interesses e influências, onde o safar-se, o enriquecer, o adquirir poder são as grandes motivações.

A galeria de personagens é caricatural, com personagens de vícios muito vincados. Para além do tirano histriónico, temos um dos seus fiéis companheiros que, caído em desgraça por uma ninharia, se junta aos rebeldes liderados por um cauteloso fazendeiro que quer arrasar o tirano numa ação militar decisiva. Os fieis sicofantas do tirano são em si uma galeria de militares novecentistas, implacáveis a exercer o seu poder, e os primeiros a abandonar o líder mal suspeitam que os ventos não são de feição. A sociedade civil não é muito melhor, com homens que se comprazem em sustentar os seus vícios noturnos de álcool e prostíbulos com uma subserviência histriónica ao seu líder. Os estrangeiros, espanhóis, apenas estão interessados em sugar o máximo de lucros possíveis, e o representante do distante poder espanhol, referência apesar da independência do país, é um velho aristocrata dandy, mais interessado em andar atrás das delícias corporais dos jovens tierra-firmezes, e por isso muito facilmente manipulável. Nos dias em que a grande festa que alegra os pobres da capital do país, todos estas intrigas e acasos se conjugam para a queda do tirano.

O tom narrativo do livro é elevado, quase uma gritaria constante de palavras. A linguagem segue o elaborado discurso romancista do século XIX, com uma enorme dose de prosa bazofial, de pronunciamentos e exposição de ideais. Tirano Banderas é um óbvio romance que parodia os à altura ainda novos estados latino-americanos, que mostra os vícios dos novos líderes, bem como os dos espanhóis depostos, e os eternos jogos de interesse económico que sustentam as inúmeras rebeliões libertadoras. Tirando alguns adereços de época, não é difícil ler paralelos entre este Banderas do século XIX e os modernos caudilhos da américa latina. Nem dos jogos e influências onde o destino dos povos é manipulado pelos interesses económicos.