Amílcar de Mascarenhas (1936). A.D. 2230. Parceira A.M. Pereira.
Este é daqueles livros que os fãs de ficção científica portuguesa conhecem bem, mas suspeito que raros o tenham lido. A.D. 2230 é apontado como um dos romances percursores do género por cá, uma obra de futurismo e antecipação publicada em 1936. Um livro que, graças a uma fantástica oferta do absolutely fabulous Paulo Morgado, não tem lugar nas estantes como foi lida. Claro, porque isto dos livros, é para serem lidos.
Dois elementos sempre me despertaram a curiosidade nesta obra. A ilustração de capa, que pese embora não ser perfeita, não deixa de ser um belíssimo exemplo de art deco futurista, particularmente se recordarmos que foi desenhada num país sem grande tradição de futurismos, quer literários quer visuais. Exceção feita ao movimento Portugal Futurista, mas isso são outras loiças, outras vertentes da cultura.
E, claro, a história, confesso que ardia nalguma curiosidade em conhecer as ideias e palavras deste clássico da literatura de FC. Bem, aqui as coisas correm pior. Basta ler as primeiras páginas para perceber que a especulação futurista de Amílcar de Mascarenhas, como observam os estudos percetivos que o Luís Filipe Silva partilhou sobre o tema, está alinhada com o ideário identitário do Estado Novo, especialmente na forma como imagina um futuro Portugal imperial, da metrópole às colónias federadas, bastião do governo masculino sob ameaça de dois grandes blocos, a união americana e a europa unida, dominadas por esse hediondo horror que são os governos feministas, que oprimem a raça masculina. É este o tom do livro.
Há que manter o sentido crítico e lê-lo pelo que é, sem descartar o óbvio lado ideológico. Notem que não estou a colocar o livro como obra de propaganda estadonovista, apenas a sublinhar a ligação ao seu ideário. Até no seu desfecho final, de um Portugal orgulhosamente só, lutando e vencendo contra todos os seus inimigos.
Confesso que achei piada a este futurismo estadonovista, está bastante bem construído. Portugal, império-confederação que reúne o continente e as colónias, é um próspero país cientificamente desenvolvido que se manteve distante das convulsões que criaram, e expandiram, os grandes blocos políticos deste mundo ficcional - uma América que engoliu o continente até às fronteiras do sul, e uma Europa que parou às portas de Vilar Formoso. Tem ainda outra característica distinta, Portugal é o último país do mundo onde o pode está em mãos masculinas, o que o torna alvo de pressões dos regimes feministas que dominam o planeta. Num pormenor curioso, o país é governado por um duunvirato, sempre composto por um par de gémeos treinados desde nascença para o governo. Face às pressões exteriores, a guerra é inevitável, e as pequenas mas tecnologicamente avançadas forças portuguesas irão derrotar forças muito superiores, combinando audácia com armas secretas. Nesta parte, a leitura é curiosamente divertida.
Está bem visto que este futurismo luso é essencialmente conservador e passadista, alicerçado em ideários que viam as evoluções trazidas pela modernidade como algo de pernicioso. É um futuro de patriotismo conservador. A misoginia anti-feminista do livro é especialmente deliciosa quando coloca as orgulhas mulheres senhoras do seu nariz a render-se aos encantos dos homens lusos, e a submeterem-se às suas vontades, deixando de lado essas veleidades feministas.
E, no entanto, é um futurismo especulativo. Não está especialmente bem escrito, entre os expectáveis arcaísmos e o constante puxar à prosa de patriotismo exacerbado. É interessante descobrir este mundo ficcional, pela construção em si, longe de excelente mas com alguma piada, e pelo seu enquadramento ideológico. Que, sublinho para os leitores mais sensíveis e alérgicos a estes temas, tem a ver com a forma como o autor pensa e se exprime na obra, e não com propagandas e panfletismos. Para quem quer conhecer a evolução da ficção científica portuguesa, esta obra, entre os defeitos e virtudes, merece ser lida pelo valor referencial.