Tetsuya Saruwatari, Dokuro.
Uma daquelas bizarrias que só no Japão. Dokuro fala-nos de um homem com uma missão: derrubar o líder de uma seita religiosa, um homem que se aproveita da crença dos outros para enriquecer e manter os seus vícios. A sua seita é poderosa e não hesita a recorrer a violência extrema, estando entrosada com a política local. O herói sofrerá uma contínua espiral de violência e tortura às mãos dos agentes do culto, até conseguir aproximar-se o suficiente do líder para o executar. Essencialmente, o argumento é uma desculpa para longas sequências de lutas.
Osamu Tezuka, Ayako.
Uma história cruel, muito longe do otimismo futurista que geralmente associamos a Tezuka. Quando um soldado japonês regressa à casa familiar, depois da derrota, é recebido pelo primeiro de muitos mistérios: uma rapariguinha de quatro anos, que lhe dizem ser sua irmã, apesar da longa idade da sua mãe. A partir daqui, começa-se a desenrolar o intricado nó de uma família tradicional japonesa, cujo patriarca rege com punho de ferro, e o filho primogénito não hesita em oferecer a sua esposa para saciar os desejos do pai, para garantir a primazia no testamento. Apesar das mudanças forçadas pela administração americana, que levaram à distribuição de muitas das terras da família pelos camponeses, estes ainda são suficientemente poderosos para fazerem o que querem. O jovem soldado também não é inocente, é um agente ao serviço de uma organização secreta que, aparentemente, trabalha para os americanos, e torna-se cúmplice numa série de assassinatos políticos. No pano de fundo, o Japão no pós-guerra. As intrigas da família, a sua cegueira pelo prestígio, poder e dinheiro, de onde só uma irmã se safa, levam ao impossível: Ayako é dada como morta, passando a viver escondida numa cave. É aí que cresce, se torna adolescente e mulher, abusada pelos irmãos. Acabará por fugir e refugiar-se junto do irmão ex-soldado, agora líder de uma organização criminosa, que a tenta reabilitar. A história tem um final tenebroso, todos os que tentam dominar Ayako morrem num acidente numa gruta, apenas a jovem sobrevive. Conto muito cruel, violento, e talvez Ayako seja uma metáfora para o Japão contemporâneo. Uma jovem que vive aprisionada pelos familiares que a antecedem, que só com a morte destes se consegue libertar e traçar o seu caminho. Metáfora para a história do Japão, e a sua encruzilhada no pós-guerra, com um país renovado a nascer das cinzar, mas que só ganharia maturidade quando se libertasse das forças obscurantistas do passado?
Sato Hirohisa, Shiga Hime.
Claro que no mundo do mangá, o vampirismo teria de ter contornos ainda mais viscerais. No mundo de Shiga Hime, grandes vampiras pertencem a uma espécie devoradora de sangue, que sobrevive caçando os meros humanos. Mas a imortalidade confere-lhes refinamento, e a mera caçada não as contenta. Preferem subjugar jovens facilmente impressionáveis, tornando-os seus familiares: um meio termo entre humano e monstro, já infetados pelo mal de sangue das vampiras, mas ainda capazes de se mover sob a luz do dia. Para apimentar a coisa, até permitem que estes familiares sejam os únicos seres que, com as suas mutações que transformam membros do corpo em lâminas, são capazes de matar irremediavelmente as vampiras. Escrevo "as" porque isso é um dos elementos da série, as vampiras assumem a forma de mulheres cujo corpo sensual oculta uma tremenda monstruosidade, e não é por acaso que os seus familiares são sempre jovens adolescentes. Os traços freudianos aqui são mais que muitos. Quando um jovem cai sob o poder de Miwako, uma das mais antigas vampiras, que o usa no seu eterno jogo sangrento com as irmãs, este irá ser obrigado a desempenhar as funções de caçador. É dos poucos que não se rende aos encantos da vampira, apaixonado como está por uma colega de turma, o que ainda torna a situação mais deliciosa para a vampira, que se compraz a manipular sentimentos, e até a corromper a jovem adolescente, tornando-a uma jovem vampira (com toques muito explícitos de Carmilla). Algo que não agrada ao jovem inadaptado que foi o familiar de Miwako antes desta trair todas as promessas que lhe foram feitas. O destino destes três jovens será digladiar-se numa interminável luta sangrenta, meros joguetes nas mãos das criaturas que servem por obrigação ou fascínio. Uma divertida mistura de horror com mangá juvenil, com algum toque de erotismo (como não poderia deixar de ser, dado que o vampirismo é em si uma imensa metáfora erótica) mas, essencialmente, daquela visceralidade sangrenta, cheia de vinhetas monstruosas, que o mangá de terror é capaz de nos oferecer. Sim, a vampira Miwako merecer um lugar na galeria de vampiras icónicas.