segunda-feira, 5 de julho de 2021

A Morte da Terra


Sebastião Morgado (1969). A Morte da Terra. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural.

Gostar de compreender a ficção científica tem destas coisas, não nos ficamos pelas modas ou autores que nos encantam, temos de mergulhar no seu passado. E levar com uma boa dose de acaso, como nesta insuspeita obra que, em 1969, prenunciava o inicio de uma nova coleção dedicada à FC, pela editora Sociedade de Expansão Cultural. Nestes dias de hoje, onde a edição de FC por cá anda à míngua e a ideia de ter uma coleção literária exclusivamente dedicada ao género parece uma miragem, soa surpreendente recordar que, no passado, havia muito mais edição, e coleções, dedicadas. Se as edições era boas, isso é discutível (a baixa qualidade das traduções da Argonauta são um clássico disto), muitos dos livros dessa época que vou apanhando em feiras e alfarrabistas estão mais virados para o pulp juvenil. Outros, como este, representam talvez tentativas de lançar por cá o género, ou desafiando escritores ou sendo o produto timorato de autores que queriam experimentar. Ramos que não floresceram da árvore da FC em português, e que quem é curioso pela sua evolução gosta de descobrir.

Este A Morte da Terra é uma obra bastante desconexa, que tenta ser Ficção Científica de aventuras para jovens. Escrevo "tenta" porque o autor, a acreditar na lista de outras obras suas nas primeiras páginas do livro, era claramente especializado em textos piedosos de cariz religioso (não por acaso, mete bastantes pitadas disso ao longo do livro). A história é algo confusa, apesar de linear: no ano 3000, a humanidade ocupa todo o sistema solar, tornando habitáveis os planetas, luas e asteroides graças a tecnologias capazes de conferir um ambiente habitável. Politicamente, há dois grandes blocos, uma confederação centrada na Terra, com um governo corrupto que pretende dominar todos os planetas, e alguns planetas rebeldes, entre os quais se situam as colónias - ou civilizações, clareza não abunda neste livro, de Júpiter e Ganimedes, cuja tecnologia os coloca a salvo das predações terrestres. A guerra é inevitável, e as super-armas terrestres começam a aniquilar e exterminar os rebeldes, em grandes batalhas de naves pilotadas por robôs. A única arma capaz de ameaçar a Terra, um asteroide desviado para colidir com o planeta, falha. Mas a Terra terá o seu fim, graças a uma súbita expansão do Sol, que aniquila a vida nos planetas interiores. Entretanto, com os terrestres já extintos, os seus exércitos de robots continuam a exterminar os restantes humanos. Só se salva Ganimedes, graças à sua tecnologia, que por acaso amplifica um efeito natural da explosão solar que paralisa as naves robóticas inimigas. Ficam aí as raízes de uma nova sociedade humana, baseada numa democracia perfeita.

Espera, democracia, leram? Num livro editado no Estado Novo, em plena ditadura? O ser ficção científica provavelmente permitia estas veleidades, um dos temas do livro é a ideia de poder democrático, simbolizado por dois polos - um corrupto e dominado por oligarquias, outro uma expressão de igualdade e representatividade perfeitas. Aliás, ideias soltas interessantes é o que não falta neste livro, onde a narrativa de aventura vai dando lugar a progressivamente maiores infodumps, à medida que o autor vai explorando o mundo ficcional que está a criar. 

E, confesso, infodumps são um prazer culposo meu. Fiquei especialmente fascinado ao ler as passagens sobre robots que substituíam os humanos em funções laborais, libertando-os para exercer o que quisessem, e tornando o mundo mais eficaz graças aos cérebros eletrónicos. Confesso que gostaria de saber como é que um autor de obras como A Roseira do Profeta ou A Porta de Martim Moniz foi buscar de forma tão profunda o tipo de especulação sobre robótica que se fixou com o trabalho de Hans Moravec. Não é uma ideia muito nova, concedo, desde sempre que caracteriza as visões sobre mecanicismos e automação. Apenas me surpreendeu pela sua visão futurista.

O worldbuilding do livro é, aos nossos olhos de hoje, incipiente e desconexo. O autor mete muitas ideias no mesmo saco, alonga-se nas explicações, inventa tecnologias sem nexo (o que, à época, era normal no género), mistura conceitos intrigantes (democracias sustentadas por tecnologia, tornar ambientes extraterrestres habitáveis, batalhas levadas a cabo por robots e não por humanos, entre outras), dá ceifadas enormes na ciência - sabemos que o tipo de expansão solar que é o fim da Terra no livro de facto irá acontecer, mas num intervalo de tempo bem superior aos mil anos que o autor se dá no livro. 

Hoje em dia, se este livro fosse editado, o seu autor seria imediatamente aniquilado pelos (raros) leitores. É demasiado simplista, desconexo, explicativo (e sim, há no reduzido campo das vozes literárias ligadas à FC quem ainda escreva assim, consigo apontar um livro intitulado Holocausto Lunar como o pior livro de FC que jamais li, de tão mal escrito e mal concebido que estava). À época, seria uma divertida leitura juvenil, mediana na narrativa, inspiradora nas ideias que encerra. Lê-lo foi uma experiência agradável - apesar das incoerências da obra, o ritmo literário é bom. Não o recomendaria como clássico absoluto de um autor perdido, recomendo-o para aqueles que gostam de conhecer antigas formas de praticar a FC, bem como de perceber a sua evolução histórica.