quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A Ponte sobre o Drina

 

Ivo Andrić (2017). A Ponte sobre o Drina. Lisboa: Cavalo de Ferro. 

Há terras que não têm o luxo de passar ao lado da história. Locais que até não são centrais, sempre foram periferias onde grandes impérios chocaram. Eternas zonas de fronteira, onde os detritos dos impérios se acumulam e deixam traços. Culturas feitas de retalhos, grupos e religiões que convivem mas não se misturam. Memórias ancestrais que despertam medos e ódios. Ódios que podem acalmar temporariamente, mas que ciclicamente regressam à tona. 

Sabemos de antemão que a história deste livro não acaba bem, porque o estamos a ler no século XXI, e conhecemos toda a história trágica e sangrenta da queda da Jugoslávia, temendo que a paz de hoje seja frágil e sucumba ao próximo grande jogo geostratégico. Que, no fundo, parece ser a sina dos Balcãs, sempre uma espécie de zona-tampão da europa, sempre à mercê de impérios, sempre um turbilhão de conspirações, ódios e, no fundo, uma daquelas zonas do planeta em que o estado de conflito é o que a caracteriza, num ciclo vicioso que a história tem revelado ser impossível de quebrar.

A ponte deste livro é uma metáfora perfeita do suplício destes territórios. Construída para unir duas margens de um rio duro, elo de união entre comunidades, cerne de uma cidade onde convivem os vários herdeiros dos povos que, ao longo dos tempos, se foram acotovelando nos territórios bósnios. Mas enquanto a ponte se mantém, as rodas da história passem, inclementes. Os poderes mudam, afirmam-se ou decaem, seguem-se guerras em que a cidade, mesmo que não esteja no epicentro dos conflitos, sofre consequências.

Esta não é uma história simpática. A ponte é a constante, mas as histórias que o livro nos conta prendem-se com as desventuras de personagens que se sucedem ao longo do tempo. Todas com um elemento comum: nenhuma termina bem. A ponte catalisa a vida na cidade, mas essa vida é dura e difícil quando os seus habitantes estão sujeitos aos caprichos dos que os dominam. A série de desgraças só parece começar a abrandar quando o livro se aproxima do final, com um período de paz e prosperidade. Que sabemos que está condenado. Aproxima-se 1914, e com ele fim de mais um mundo.

Este livro de Ivo Andrić, primeiro volume de uma trilogia, é uma forma de compreender os porquês da história conturbada da Bósnia, que nunca foi um lugar pacífico. Sem lições de história, ou relatos geoestratégicos, a história conta-se através dos desaires que se sucedem aos habitantes da cidade tornada possível pela ponte. Com isso, assistimos ao desenrolar da história bósnia do auge do domínio otomano até à ocupação austro-húngara e ao dealbar do nacionalismo sérvio. Percebemos que as lutas e ideologias apenas criaram um cadinho de relações complexas, em que a vida é moldada por forças que se tornaram ancestrais. Uma obra dura, implacável, que nos ajuda a compreender as raízes histórias dos conflitos nos balcãs, mesmo à distância de quase um século - o livro foi editado em 1945, no rescaldo de mais um choque de impérios que contribuiu para aprofundar os ódios na região.