Ricardo Lourenço (ed.) (2020). A Dança dos Ossos: Antologia do conto gótico Luso-Brasileiro. Silveira: Livro B.
Um trabalho antológico de enorme fôlego, levado a cabo por Ricardo Lourenço, que dinamiza o Projeto Adamastor, um site que recupera a literatura esquecida para formato digital. Esta grande antologia reúne contos góticos vindos dos dois grandes polos da lusofonia. Traz-nos clássicos da literatura luso-brasileira, tendo as trevas, o horror e a decadência como tema comum. Encontramos alguns nomes muito bem conhecidos da literatura dos dois lados do Atlântico, mas também autores mais obscuros. Um trabalho notável que nos leva a conhecer as visões de terror escritas entre o século XIX e os princípios do XX, pegando nas tradições do tenebrismo gótico britânico e do sturm und drang alemão para as realidades portuguesa e brasileira. É uma excelente forma de descobrir o gótico tropicalista, e rever as grandes histórias do fantástico português.
O Defunto, Eça de Queirós: Quando a bela esposa de um nobre espanhol chega à cidade de Segóvia, o coração de um jovem cavaleiro entra em sobressaltos. Tenta fazer-se notar pela jovem, mas sem sucesso, e vendo que o amor não é correspondido, pára as suas tentativas de cortejar. Mas o marido desta é possessivo e ciumento, e arma uma cilada ao jovem apaixonado. Força a mulher a escrever uma mensagem amorosa, combinando um encontro numa quinta. O nosso jovem cavaleiro, encantado de amores, vai a caminho da cilada o mais depressa que pode, mas o caminho mais rápido passa pelo cerro dos enforcados, onde baloiçam ao vento os cadáveres dos justiçados. E, ao cruzar-se com esse local tétrico, um dos enforcados dirige-lhe palavras, convencendo o cavaleiro a deixar-se acompanhar por tão inusitada aparição. É o morto que cai na cilada do marido ciumento, que passa os dias seguintes num frenesim tal por ver a sua vítima viva, e o seu punhal cravado no peito de um cadáver enforcado, que definha e morre. O que dá um final feliz à história. A jovem viúva ganha sentimentos pelo cavaleiro, e tudo termina em casório frente ao bispo de Segóvia. Conto clássico de Eça, adaptado em 1954 ao cinema por Fernando Garcia como O Cerro dos Enforcados.
A Dama Pé de Cabra, Alexandre Herculano: Confesso que me tornei fã deste autor clássico português ao ler este conto quando era pré-adolescente (e Eurico o Presbítero reforçou o gosto, o que é uma raridade, bem sei). Herculano pega em lendas medievais para tecer uma história de maldade e diabruras nos tempos do início da Reconquista cristã, invocando os mistérios que se encontram nas fragas das florestas, a venalidade dos nobres mais fiéis aos amores que à fé.
A Caveira, Camilo Castelo Branco: Um amor que atravessou uma vida, sob a forma da caveira de uma mulher há muito morta que acompanhou sempre o homem que mais a amou. Puro romantismo exacerbado, bem ao gosto novecentista.
A Torre Derrocada, Alberto de Vasconcelos: Uma lenda negra sobre sereias, com a história de uma donzela que suspira pelo seu enamorado, cujo barco está de regresso. A dor quando descobre que ele morreu no mar pouco antes de chegar ao porto é forte, mas mitiga-se quando uma aparição vinda do mar se revela como o espírito do seu amor. Mas esse espírito, num delicioso toque tétrico gore, revela-se um cadáver semi-comido pelos peixes. E a donzela é castigada tornando-se uma sereia, atraindo marinheiros para a morte com o seu canto.
O Mistério da Árvore, Raúl Brandão: Uma bela fábula negra. Uma árvore descarnada, que serve como local de dependurar condenados, é a visão de um rei sisudo e malvado que vive no seu negro palácio. Mas quando um casal enamorado se beija sob os ramos desnudos, nasce um ramo viçoso numa árvore morta.
O Corvo, Fialho de Almeida: Não um conto, mas um voo poético em prosa, de uma sensibilidade muito gótica.
A Feiticeira, Ana de Castro Osório: Amores de aldeia e mitos tradicionais cruzam-se nesta história singular. Quem irá casar com o rapaz mais apetecível da aldeia, a apagada tecedeira que é de trato mais refinado, como afilhada da velha senhoria da terra? Ou a moça de sangue fogoso e trato fácil, que colhe o olhar de todos os homens e do jovem casadoiro em particular? Tudo muda quando, numa noite escura nos barrancos, ao regressar de festas em aldeias vizinhas, o jovem se depara com o segredo das mulheres da terra. Algumas dedicam-se à bruxaria, e num sabbat por entre as fragas, é a jovem fogosa que se mostra ser a mais feiticeira, entregando-se livremente ao mafarrico. A partir daqui, os caminhos ficam traçados. As núpcias dão-se com a jovem tranquila, e a feiticeira fica reduzida à condição de bruxa da aldeia.
A Morta, Florbela Espanca: Um conto decadente da poetisa. Um amor impossível, entre uma jovem morta e o seu enamorado ainda vivo, com fugazes lampejos na zona transitória do cemitério.
Os Canibais, Álvaro do Carvalhal: Nenhuma antologia de contos de terror góticos em português ficaria completa sem esta pérola decadente deste promissor mas cedo desaparecido (só nisso, já é um elemento gótico-romântico). O conto tem tudo. Mistérios, amores, conquistas e paixões, ciúme possessivo e assassino, momentos do arco da velha, exacerbação completa de sensações, sublime decadência da alta sociedade, e um final da mais profunda ironia. Tudo contado por um narrador que quebra o estilo naturalista, guiando e sublinhando os excessos narrativos, tornando-se dessa forma outro personagem da história, mas um que está por detrás das cortinas, conhecendo, explicando, mas nunca participando. Um conto sublime na sua decadência.
Uma Récita do Roberto do Diabo, Júlio César Machado: Se um demónio na Terra faz o que pode para levar almas à perdição, através dos maus caminhos do jogo e dos prazeres carnais, percebe que ainda tem muito que aprender quando vê uma récita onde se conta a história de um jovem lavrador que mata o pai para poder enriquecer e sair da aldeia.
O Cadáver, Beldemónio: Um conto obsessivo, onde um jovem que regressa de um baile tropeça num cadáver. Assustado, foge para uma tasca, e no dia seguinte, com os vapores da bebida esfumados, julga-se perseguido pela polícia e sente-se tão atormentado pela visão fugaz que acaba por acreditar que é ele o assassino.
Sede de Sangue, Manuel Teixeira Gomes: Numa aldeia costeira, um velho capitão observa com muita atenção as andanças dos donos de uma taberna local, que depressa encontram na prostituição a melhor fonte de lucro. E, um dia, chega à aldeia uma prostituta que faz as delícias de todos os clientes, embora pareça encerrar um segredo, recordando constantemente que um dia, chegará um homem que lhe chupará o sangue. O atento capitão depara-se com esse homem e, seguindo-o, assiste aterrorizado ao cumprimento da profecia, com a mulher a ser atacada pelo vampiro e deixada, morta sem pinga de sangue, numa praia ao amanhecer. Conto com alguns toques de Stoker entre o recriar da vida pequeno-burguesa das aldeias, dos primeiros que em portugal fez referência ao vampirismo.
A Estranha Morte do Professor Antena, Mário de Sá Carneiro: Um ano passado após o aparente atropelamento fatal do professor, o seu assistente revela-nos o que descobriu sonbre a sua estranha morte, que envolveu tecnologias capazes de aplicar uma teoria de transmutação do corpo em diversos universos. Um conto surreal, que mistura elementos de ficção científica e terror.
Noite na Taverna, Álvares de Azevedo: O lado brasileiro da antologia inicia-se com um longo conto episódico, leve no sobrenatural mas pesado na decadência gótica. Um grupo de amigos, passando a noite a beber numa taberna, partilham as histórias das suas desditas, entre o fascínio pela morte à propensão para arruinar a vida a jovens ingénuas e apaixonadas, sempre com consequências funestas. É um tour de force de negritude, consegue ir do canibalismo à necrofilia, com imensa degradação moral à mistura.
A Dança dos Ossos, Bernardo de Guimarães: Na noite cerrada do sertão, um caboclo conta ao escritor um encontro com o sobrenatural, sob a forma de ossos dançarinos na floresta. O escritor tenta encontrar explicação lógica, mas acaba por ficar a conhecer a tétrica história de crime que vitimou um inocente, assassinado por um rival nos amores, e cujo corpo despedaçado nunca foi totalmente encontrado. É por isso que, à noite, os seus ossos insepultos dançam na escuridão.
Os Porcos, Júlia Almeida: Um conto absolutamente brutal, que coloca a nu os falsos moralismos sobre a mulher, algo que ainda hoje persiste. Uma pobre cabocla, engravidada pelo filho do patrão, sofre o estigma dessa vergonha. O amante abandonou-a, claro, até porque se vai casar com mulher de sangue mais fino. Já o pai dela reage à vergonha prometendo que mal nasça, irá atirar o neto aos porcos, para estes o comerem. Entre o desespero e o isolamento, a rapariga foge e acaba por ter um parto na selva, que irá terminar da pior forma possível.
Acauã, Inglês de Sousa: mitos amazónicos e horror gótico cruzam-se numa história em que um homem leva para casa um monstro amazónico, transformado numa ingénua menina. Criatura que cresce junto à filha do homem, e cujas capacidades se manifestam no dealbar da puberdade.
Violação, Rodolfo Teófilo: O verdadeiro horror deste conto é a descrição de uma epidemia de cólera que assola uma cidade brasileira, que o autor, ligado à vacinação, descreve com pormenores de revirar o estômago. Anos depois, o narrador regressa à cidade onde viu morrer toda a sua família, e cruza-se com um outro sobrevivente que lhe conta a sua história singular: infetado, é tratado pela sua jovem noiva, mas é dado como morto e empurrado para uma vala comum. Mas não está morto, apenas em catalepsia (esse clássico artifício das histórias dos enterros vivos), e ao horror da vala comum ainda terá de assistir a outro: a sua noiva, morta, que é empurrada para a vala, e ainda profanada por dois dos coveiros. O final, a puxar à necrofilia e ao horror do enterro vivo, dá o toque gótico a um conto cujo verdadeiro foco é o horror da doença.
Maibi, Alberto Rangel: Mais um conto cruel, não pelo aspeto sobrenatural mas pelo lado humanista. Quando um seringueiro vende a mulher para pagar a sua dívida ao patrão, acaba por enlouquecer e fazer à mulher o mesmo que faz às árvores cuja seiva drena. Uma história de loucura assassina, mas que realmente nos fala das tremendas injustiças do sistema de quase escravidão em que viviam os trabalhadores que, na Amazónia, drenava as árvores para produzir borracha natural.
Assombramento, Afonso Arinos: Quando uma companhia de soldados pára para passar a noite, o seu comandante desafia o destino, decidindo pernoitar numa casa assombrada. E, nestas coisas, o destino nunca se deixa vencer.
11 e 20, Medeiros e Albuquerque: No remanso de um clube de viajantes, um nómada experimentado conta a sua mais estranha história de viagem, falando de um companheiro que viva assombrado e, todas as noites pelas 11:20, sentia a mão gélida de um cadáver a segurar a sua. Essa assombração vinha de um crime que cometeu para enriquecer.
Demónios, Aluísio Azevedo: Um conto em puro tom gótico, um delírio onde um escritor começa a sentir uma escuridão a impôr-se no mundo. A descobrir que todos os que o rodeiam estão mortos e putrefactos, embora felizmente a mulher que ama ainda está viva. Para não aguardarem a morte, decidem ir ao mar terminar com tudo, mas no caminho, começam a regredir, regressando ao primitivismo, com os seus corpos a metamorfosearem-se em animais, e posteriormente árvores. Bizarra, esta é uma história proto-surreal.
O Defunto, Thomaz Lopes: Um conto que pega num tema clássico da literatura de horror, o enterro vivo. Um homem acorda numa cripta, percebendo que foi dado como morto e enterrado. Entre fome e delírios, acaba por morrer, encerrado na tumba.
A Causa Secreta, Machado de Assis: Quase nem percebemos o porquê deste conto ser de horror, até ao final que o encerra. Querendo recompensar um homem que o ajudou a convalescer de uma doença, um médico desafia-o a trabalhar com ele numa clínica. Apesar da esposa deste ter as suas reticências, revela-se tão bom administrador, cuidado com desvelo da clínica e dos seus pacientes. Entretanto, o médico apercebe-se do fosso crescente entre o amigo e a sua esposa, sentido nascer um novo amor. Já o desvelo do cuidador revela-se na vontade que mostra de aprender anatomia, algo que incomoda muito a esposa, pelos gritos dos animais que usa para aprender os segredos dos corpos. Reside aqui o segredo do conto, ao expor a alma de um homem aparentemente abnegado e cuidador desvelado dos outros, mas que na verdade se compraz a torturar animais indefesos até à morte.
O Bebê de Tarlatana Rosa, João do Rio: Mergulha-se no Carnaval brasileiro, nas volúpias do folguedo, da gratificação sexual nas ruas quentes. Um homem vê numa mulher voluptuosa a oportunidade de saciar o seu desejo, mas esta exige manter o seu disfarce, com um incómodo nariz. O homem insiste, e ao retirar o disfarce, descobre que esta bela mulher é, na verdade, terrivelmente desfigurada. Os tempos de moralidade solta do carnaval são os únicos em que ela pode voltar a sentir a luxúria do contacto de um homem. Mas para o homem, a visão do rosto cadavérico é de puro horror.
Confirmação, Gonzaga Duque: Um conto muito académico, daqueles que segue os passos e preceitos literários. Leva-nos a uma clínica, cujo médico investiga em segredo manifestações do sobrenatural. Um grupo de amigos irá participar numa sessão espírita, em que uma medium conseguirá manifestar fisicamente um espírito. Essa manifestação terá consequências funestas para um dos personagens.
Os Olhos Que Comiam Carne, Humberto de Campos: Conto de horror, mas também de profundo humor negro. Quando um amado escritor cega, a sua esperança está no trabalho miraculoso de um médico alemão, cujas técnicas são capazes de curar a cegueira. Uma vez que o médico vem a caminho da américa do sul, para curar um paciente na Argentina, a sociedade mobiliza-se para que pare no Brasil e ajude este escritor. A operação é um sucesso. O médico aplica a sua técnica inovadora de reparação do nervo ótico, misturando raios X com filamentos para curar o nervo. Mas, ao retirar as vendas que protegem a vista operada, o escritor descobre que a sua visão foi restaurada de um modo peculiar: passou a ver em raios X. Enlouquecido, ao ver as pessoas como silhuetas de esqueletos, arranca os olhos das órbitas.