quarta-feira, 2 de setembro de 2020

O Corsário dos Sete Mares

 

Deana Barroqueiro (2012). O Corsário dos Sete Mares - Fernão Mendes Pinto. Alfragide: Casa das Letras.

Quando pego neste tipo de livros, fico com a sensação de que temos um trauma coletivo com a nossa história. Talvez por más memórias do que tivemos de empinar como estudantes para passar nos testes, ou como reflexo dos tempos da ditadura que enaltecia uma visão histórica exacerbada e redutora? Deixamos de parte a riqueza de factos e personalidades, que poderiam alimentar inúmeras histórias de aventura. Algo que lá fora não acontece, as aventuras históricas são todo um género explorado em séries literárias e cinema, que nos transportam à era medieval, ao iluminismo, guerras napoleónicas (só este sub-género é uma minha para narrativas de aventura militar em terra ou nos mares) ou tempos mais recentes da história. Parecemos esquecer que também temos um rico substrato, que as nossas histórias e lendas medievas, os feitos e a exploração crua dos descobrimentos, a colonização do Brasil, a relativa decadência setecentista, poderiam alimentar leituras divertidas e empolgantes. Mas é raro encontrar esses livros (e não é uma questão de mercado, por cá devoram-se as aventuras históricas) a falar sobre a nossa história. Notem, isto não é um rant conservador-chegófilo sobre falta de pureza lusitana no nosso mercado editorial, apenas uma observação que o nosso património histórico poderia ser tão bem explorado como o de outras nações. 

É este um dos aspetos mais interessantes deste Corsário dos Sete Mares. É um livro monumental, pelo tamanho e ambição. Resume, romanceia e essencialmente aproxima-nos da Peregrinação de Fernão de Mendes Pinto, ao mesmo tempo um clássico histórico da literatura portuguesa e um relato das inúmeras aventuras vividas pelos portugueses que, no século XVI, iam para a Índia em busca de riquezas. Glória e expansão da fé, diz-se oficialmente, mas na verdade, era o lucro a qualquer custo que motivava à aventura. De certa forma, a autora traduz para os leitores uma obra cuja leitura original não nos é fácil, não só pelo estilo mas pelas mudanças linguísticas. As aventuras, ou melhor, desventuras de Mendes Pinto são contadas não como relato, mas como romance, dando à história um caráter de aventura pura. O romancear torna este pesado livro numa leitura leve, estruturada em pequenos capítulos que nos contam episódios da Peregrinação, e não só. A autora consultou uma enorme quantidade de fontes históricas que complementam, ou dão outras visões, sobre as histórias de Mendes Pinto. 

Tem um necessário caráter didático, mas como leitor, percebo que o principal motivante deste livro é redescobrir quer a grande história dos Descobrimentos, quer a história pessoal de um aventureiro. Tornar a leitura num romance permite dar corpo e alma às personagens, bem como adquirir uma visão crítica muitas vezes ausente do registo historicista institucional. Ler estas aventuras não é ler uma saga de coragem e heroísmo. Antes, é perceber que a história dos portugueses na Ásia se fez de guerras, massacres, trafulhices, pirataria, e imiscuição nos conflitos locais com o fim último de obter mais lucro comercial. Por outro lado, o confronto entre portugueses quinhentistas e a miríade de povos entre o mar vermelho, Índia, China, e Japão (com um desvio até às terras que hoje são a Austrália) faz-se com uma visão de curiosidade e deslumbramento com culturas e costumes que, aos contemporâneos, deveriam parecer quase alienígenas.

Este recontar da Peregrinação é um livro que surpreende. Confere à história dimensões humanistas, dando corpo a pessoas e factos passados há muitos séculos. Deixa transparecer uma visão crítica, realista, do que foi realmente a atuação portuguesa nas Índias. Mas, e é este o ponto mais importante, é uma belíssima história de aventuras, cheia de reviravoltas intrigantes e momentos empolgantes. Saber que não é ficcional, que foram mesmo vividas por um dos nossos antepassados, dá um gosto extra à leitura.