terça-feira, 18 de agosto de 2020

Fortune Smiles


Adam Johnson (2015). Fortune Smiles. Nova Iorque: Doubleday.

Fui enganado com este livro. Sugestão de uma revista literária francesa numa edição temática sobre ficção científica (embora o livro não tenha sido sugerido nesse dossier), seduziu-me uma curta crítica que observava a ligação das suas histórias à modernidade tecnológica. Peguei nele como um livro que interseta literatura com tecnologia como tema, fora do domínio da FC, e na verdade apenas o primeiro conto espelha esses cruzamentos. Mas nem por isso foi uma desilusão. Os tempos modernos são, de facto, um dos grandes temas destas histórias, entre o futuro próximo e o passado recente. As histórias são profundamente humanas, mesmo quando têm como panorama cenários geopolíticos complexos. É intrigante (ou nem por isso, é um eficaz artifício literário) que Johnson termine sempre os seus contos em suspenso, inconclusivos, deixando a mente do leitor à espera, tentando imaginar como a história chegaria ao fim. Como episódios em série cuja continuidade se perde. A prosa é excelente, a capacidade de levar o leitor também, e oscila entre uma certa crueldade para com os personagens e uma forte temeridade em abordar questões muito incómodas.

Nirvana: Com a mulher paralisada por uma doença neurológica rara, de recuperação incerta, um programador de algoritmos de simulação de personalidades cria aquele que será o seu mais popular projeto. Um simulacro do presidente dos Estados Unidos, criado por um algoritmo que vasculha a Internet em busca de discursos e vídeos para simular, numa espécie de holograma, um homem assassinado. Claro que o simulacro apenas responde às conversas dos utilizadores com frases concatenadas a partir do conteúdo das bases de dados, mas não é por isso que não deixa de ser usado como confidente artificial pelo seu criador. Que, também, se entretém a reprogramar um drone que se desviou da trajetória. As formas de lidar com a depressão suicida de uma mulher paralisada que sente que não tem recuperação possível culminam numa solução tecnológica para o estado depressivo. Algo que assume a forma de um simulacro de Kurt Cobain, cuja música a mulher ouve de forma obsessiva, porque a profundidade da alienação deste cantor se aproxima dos seus próprios sentimentos. Interagir com o simulacro dá-lhe uma esperança de compreensão externa. Porque é para isso que estas simulações são usadas, uma forma de validação externa de emoções e sentimentos, dada por uma entidade artificial não consciente.

Hurricane Anonymous: Entre os destroços físicos e humanos deixados pela passagem de furacões, um condutor da UPS descobre a paternidade. A mãe do filho que mal conhece está à deriva, e o homem começa a habituar-se à ideia de fazer crescer um filho. Com ajuda da namorada e do pai às portas da morte, encontrará uma via. História humanista, por entre os detritos da destruição causada por furacões.

Interesting Facts: Demora a perceber que esta é uma história de fantasmas. Acompanhamos uma mulher em tratamentos oncológicos, muito consciente dos seios de todas as outras mulheres com que o marido se cruza no dia a dia. Talvez uma história de ciúmes, pensamos, até nos apercebermos que a mulher afinal já não está lá, que apenas observa o marido, agora viúvo melancólico, sem realmente se poder aproximar.

George Orwell Was A Friend Of Mine: A memória tem coisas curiosas. Podemos passar uma vida inteira pensando que sempre fizemos o correto e o justo, quando na verdade as nossas ações tiveram impacto violento na vida das pessoas. O antigo comandante de uma prisão da Stasi percebe isso no final desta história cruel. As suas memórias, de uma prisão ordeira onde não haviam torturas e os presos eram realmente criminosos, não coincidem com as memórias de toda uma sociedade. Nem as suas memórias pessoais, de uma família que o recusa sem ele perceber muito bem porquê, coincidem com a realidade. Mas, ao revisitar a prisão que controlou durante décadas, confrontado com as memórias de uma das suas ex-prisioneiras, começa realmente a compreender a monstruosidade do sistema que sempre defendeu.

Dark Meadow: Talvez a mais incómoda das histórias deste livro. Acompanhamos um discreto técnico de informática que vive retirado do mundo, para se proteger, mas também para proteger os outros. Lida com o estigma de ser pedófilo, como muitos, uma vítima de abusos infantis que ao crescer percebeu que tinha uma sexualidade desviante. Mas resiste aos impulsos, apesar da sua atração, compreende o quão revoltante é o uso de crianças para gratificação sexual. E age em conformidade, de uma forma pouco visível, assumindo um certo papel de justiceiro. Como técnico, é especializado em reparar sistemas informáticos, e invariavelmente, aconselha os que trocam imagens de pornografia infantil via internet a pararem com as suas atividades. Se não por sentirem empatia com as vítimas, pelo menos como forma de proteção, já que conhece formas simples destes serem rastreados pelas autoridades, com que até colabora. Se bem que este mundo é negro, povoado por homens sem escrúpulos, que lhe tentam despertar as tendências que tanto se esforça em controlar. A sua história complica-se quando duas crianças, filhas de uma vizinha algo ausente, começam a aproximar-se porque vêem neste homem alguém que as defenda. Papel que assume, como mais uma forma de combater as suas tendências, e se recusar a ser abusador. O intrigante neste conto é não seguir o branqueamento da pedofilia ao estilo Lolita de Nabokov (onde são precisas algumas camadas de abstração para se compreender o monstro que é Humbert). Este personagem sabe o que é, e a sua vida é uma luta constante entre os seus impulsos e a sua capacidade de discernimento, numa enorme recusa em se tornar num alguém revoltante.

Fortune Smiles: Regressar à Coreia do Norte não é um anseio normal entre exilados, por fortes que sejam as saudades da família. Mas para dois amigos que fugiram do paraíso do Juche, a adaptação à modernidade sul-coreana não está fácil. Curiosamente, é o mais deserascado do par, um homem sempre cheio de esquemas e um sobrevivente nato, que decidirá regressar ao país onde o espera a prisão ou a morte. E, para o fazer, adapta o estragema dos exilados e dissidentes, que usam balões para enviar bens ou propaganda para lá da zonda desmilitarizada. Este exilado vai um pouco mais longe. Ata balões a uma cadeira, e lança-se aos céus na esperança de regressar à pátria. Entre reminiscências da vida corrupta na Coreia do Norte e as inadaptações à moderna Coreia do Sul, esta história recorda-nos um dos tristes anacronismos políticos herdados do século XX.