terça-feira, 17 de março de 2020

Criatura Maldita


Hideshi Hino (2019). Criatura Maldita. Barcelona: La Cúpula.

Dos mais estranhos, e inquietantes, contos cruéis de Hino. A história é de um surreal negro, com toque daquele sobrenatural japonês que foge às nossas lógicas de crime e castigo, ou de vitimização e inquietude. Um conto de horror que escava sempre mais fundo, mas que termina com um inesperado lampejo de humanismo no fundo de uma tenebrosa descida à selvajaria.

O momento feliz de um pai ao nascer as filhas gémeas é estragado pela misteriosa deformidade de uma. Entre a incredulidade e vergonha, o homem faz o impensável, abandona o bebé deformado numa lixeira. Onde, contra todas as probabilidades, sobrevive, por entre os detritos daquele a que Hino chama de cemitério do mundo. A menina é realmente monstruosa, até os animais fogem dela, por instinto aprende a caçar. Tem uma peculiar fisiologia. O seu corpo está em constante apodrecimento, roído por vermes, e apenas o sangue das criaturas que apanha a mantém viva. Atraída pelas luzes da cidade, depressa encontra na carne humana uma nova fonte de alimentação. É na cidade que o instinto a leva à casa dos pais, onde descobre a sua irmã gémea. Onde percebe, olhando para a menina perfeita da qual é o reflexo distorcido, tudo o que lhe foi negado, o regaço maternal, o conforto mais simples, o amor humano. Poderá, com um gesto canibal, trocar de lugar com a sua irmã. Mas, num momento da história que não consigo compreender, decide não o fazer. Foge por entre as trevas, ao som dos gritos da mãe e irmã que não suspeitam que existe, do desespero do pai que a reconhece, alvejada pela polícia que dá caça à criança canibal. Arrasta-se para o seu covil no meio do lixo, onde se deixa adormecer, talvez para jamais voltar a acordar.