quinta-feira, 31 de outubro de 2019
Dampyr: O Suicídio de Aleister Crowley
Mauro Boselli, Michele Cropera (2019). Dampyr: O Suicídio de Aleister Crowley. Lisboa: A Seita.
Confesso que Dampyr não é das personagens Bonelli que mais me seduz, em parte pela violência que lhe está implícita, mas a seleção de histórias que tem sido editada por cá estão a revelar-se exceções à regra. Cerebrais e complexas, vão mais longe do que a caça a vampiros com extremo prejuízo. E esta, primeira edição da nova editora Seita, surpreende também noutros aspetos.
Somos transportados a dois tempos. À Lisboa pessoana dos anos 30, com o mítico cruzamento entre o nosso poeta e o mago (ou charlatão) Aleister Crowley. A partir do suposto desaparecimento do mago inglês na Boca do Inferno, tece-se uma história onde esta ravina na Guia é na verdade um portal para outros mundos, e dá acesso a um local muito específico, onde a geometria não é euclidiana, as estrelas no céu estão erradas, onde o grande Cthulhu dorme o seu sono, protegido pela sua prole e pelos inenarráveis shoggots. Crowley elabora um ritual de magia sexual que envolve Ofélia, a eterna noiva de Pessoa, para unir passados e futuros e abrir uma ponta para que, no presente, Dampyr e os seus companheiros sejam atraídos a Lisboa. Onde repetem o ritual e conseguem travar o acordar do grande mal.
O toque lovecraftiano cruza-se com os mitos europeus da era das descobertas, de ilhas perdidas no imenso mar. Mas onde o livro volta a surpreender é no toque pessoano. Pessoa é mais do que um personagem acessório nesta história, e Boselli revela que fez muito bem o trabalho de casa, caracterizando-o, e aos seus heterónimos, com um rigor que vai muito além do que se esperaria numa história de série. O cuidado deste argumentista em retratar fielmente Portugal já era bem percetível nas anteriores edições de Dampyr pela Levoir. Mergulhamos mesmo no mundo de Pessoa, na sua peculiar personalidade e lado esotérico. Se a luta contra o Grande Ancião desperta o olhar pela espetacularidade das pranchas de Cropera, é a Lisboa de Pessoa que realmente cativa nesta aventura onde o personagem titular fica remetido para segundos planos.