terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Tutti gli incubi di Dylan Dog


Tiziano Sclavi, Angelo Stano, Giampiero Casertano. Tutti gli incubi di Dylan Dog. Milão: Arnoldo Mondadori.

L'Alba dei Morti Viventi: E foi aqui que tudo começou. A primeirissima  história de Dylan Dog, onde Tiziano Sclavi nos dá desde logo os traços gerais que se tornaram quase imutáveis. A campainha que grita no número sete de Craven Road, a casa cheia de memorabilia do fantástico, o toque do clarinete, o humor idiota de Groucho, o modelo de galeão que Dylan vai construindo (até hoje, não o terminou), a sua relação romântica com as mulheres com que se cruza, o caráter de aventureiro algo impotente, que apenas vê no sobrenatural como a hipótese que sobra depois de descartar as restantes. A única diferença que li neste Dylan inicial é um certo humor ácido, e não o ar nostálgico que depois viria a adquirir. A história em sim é brilhante, um início à altura da personagem. Sclavi faz aquilo a que nos habituou, criar histórias originais cheias de referências à literatura e cinematografia de terror. Para além das óbvias - morti viventi é uma história de zombies, temos demónios (se bem que Xabaras se irá converter mais tarde em pai de Dylan), toques de Frankenstein (completos com geradores vandegraaf) e uma genial referência visual a The Exorcist (basta uma vinheta, com uma criança zombie). Esta é uma história marcante, que deu a faísca a um dos personagens mais duradouros e influentes da Casa Bonelli.

Memorie Dall'Invisible: Para mim, esta sempre foi uma das mais enigmáticas histórias que Sclavi escreveu para Dylan Dog. É giallo puro, há um assassino em série à solta pelas ruas de Londres e Sclavi compraz-se em trocar-nos constantemente as voltas na busca de quem é o culpado, dando-nos sucessivos possíveis criminosos (um dos quais, apesar de inocente, confessar-se-á e será enforcado pelos crimes) até nos fazer a vontade e revelar o verdadeiro criminoso, se bem que deixa logo nas primeira vinhetas uma pista para a sua identidade. O enredo é tortuoso, como convém a um bom policial, com múltiplas linhas narrativas que envolvem Dylan, o inspector Bloch, um jornalista acérrimo no ataque ao trabalho da Scotland Yard (major spoiler: é este o assassino) e uma prostituta que organiza as colegas para contratar Dylan, numa tentativa para se defenderem de um criminoso que as tem como alvo. E uma outra linha narrativa, muito enigmática, sobre um homem em quem ninguém repara, aparentemente invisível, testemunha de um dos assassinatos e ele também caçador, por vingança, de um assassino que acabará por se revelar ser o seu irmão gémeo. Bizarro e enigmático, mesmo para os padrões da série. Sendo Sclavi um amante das referências, há uma verdadeira pérola do fumetti em que a história referencia Nighthawks, quadro de Edward Hopper sobre a solidão onde vemos da rua, iluminados pela luz da cafetaria, anónimos noctívagos ao balcão.

Jekyll: Novamente, uma aventura em registo de Giallo. Dylan cruza-se com um pacato professor universitário de psicologia que partilha o apelido com o lendário Doctor Jekyll do romance clássico de Stevenson. Uma alusão que parece mortífera, quando se começa a ver envolvido na morte misteriosa de mulheres com quem se relacionou, incluindo a ex-esposa e o filho. As mortes são violentas, aparentemente cometidas pelo alter-ego do pacado professor, e deixam sempre uma pista, uma pena de corvo. Tudo aponta para Hyde, que irá varias vezes a tribunal acusado das mortes, e acabará condenado depois de ser, aparentemente, desmascarado por Dylan Dog. Mas o mundo do giallo não é simples, e o verdadeiro culpado está na figura de uma personagem discreta, uma ex-aluna deste professor que ficou traumatizada por um ataque aleatório de um corvo numa das suas aulas, e assume vários papéis numa bizarra vingança, incorporando-se como o violento Senhor Hyde que reside dentro dos mais pacatos Jekills.

Golconda: Surrealismo puro cruza-se com toques de splatterpunk numa história com fortes contornos sobrenaturais. Londres é assolada por uma praga de figuras estranhas - homens de Magritte mortíferos, olhos gigantes que se deslocam de bicicleta, fadas que raptam Mortimer (um brilhante cameo, a replicar o estilo gráfico de E.P. Jacobs). Ao mesmo tempo, estranhos eventos desenrolam-se num bar underground apelidado de inferno, aparentemente invadido por demónios que assassinam noventa e nove vítimas num incêndio. Pelo meio, Dylan apaixona-se pela jovem dona do bar, uma mulher obcecada por Golconda, uma cidade indiana mas que também é o nome esquecido do local onde tinha o bar, uma antiga igreja que foi palco de rituais satânicos mortais. Para complicar o argumento, a intervenção demoníaca foi despoletada por um erro telefónico, com a dona do bar a ligar para os demónios por engano. Mas estes nada têm a ver com a explosão de surrealismo em Londres. Essa foi causada por um casal de jovens enamorados que, acidentalmente, tropeçaram num lugar mágico e abriram uma fenda no consenso do real. Sclavi oferece-nos uma aventura profundamente irreal, onde a não-linearidade narrativa e a procura do non-sense surreal se ligam a uma visão progressista do sobrenatural. O grande demónio, apesar do seu aspeto repelente, aparece mais como um gestor responsável do que uma criatura arrepiante.

Inferno: A encerrar a antologia, mais um toque de puro surrealismo. Na visão de Sclavi, não há um inferno único, antes muitos espaços infernais, alguns correspondem às imagens míticas, outras a verdadeiros paraísos. Não escolhemos o nosso inferno, é-nos tão aleatório como nascer onde nascemos. E há um muito especial, sob a cidade de Londres, um inferno burocrático onde um erro clerical mergulha Dylan Dog, a sua mais recente paixão e o espírito do marido desta numa aparente história de crime. É notável a visão surreal de um inferno cujos demónios são respeitáveis engravatados com cabeça de martelo, carimbo, ecrã de computador ou outros instrumentos de tortura burocrática.