terça-feira, 28 de agosto de 2018
Steampunk Internacional
Pedro Cipriano (ed.) (2018). Steampunk Internacional. Calvão: Editorial Divergência.
Devo dizer que fique muito bem surpreendido por esta antologia. Discute-se bastante o problema linguístico da FC europeia, com o quase total desconhecimento do que se faz nos diferentes países graças à barreira linguística e falta de meios que interliguem autores e disponibilizem o seu trabalho num poliglota espaço europeu. Só os que escrevem em inglês se safam a isso, graças ao seu caráter como língua franca global. Há eventos, há sites, há discussão, mas por cá sabemos tanto sobre a FC francesa, finlandesa, alemã ou (inserir aqui qualquer país da UE) como lá. E se sabemos pouco, menos lemos.
A diversidade local, cheia de vozes interessantes, raramente consegue afirmar-se perante a hegemonia quase monocultural da FC anglo-saxónica. Isto não é um comentário xenófobo, apenas um resmungo de quem sabe que coisas interessantes se publicam no espaço europeu, mas não consegue ler graças às barreiras linguísticas e de divulgação. Até me safaria a ler em francês, espanhol ou italiano, mas com a baixa divulgação dos seus autores e temas dita que nem sei por onde começar. E nem vale a pena olhar para outras línguas europeias mais guturais. Recordo no dia aberto do ESA ESTEC em Noordwijk ter olhado, entre o curioso e o incompreensível, para livros clássicos de FC holandesa. Há traduções para inglês destes livros, perguntei ao representante do clube de FC com banca no evento. No, none, respondeu. Aqueles livros, as suas histórias e temas, ser-me-ão para sempre incompreensíveis.
(Por falar em remungos... notem que um centro de pesquisas da ESA não tem problemas em convidar clubes de FC a estar presente no seu dia aberto. Por cá, se um grupo de entusiastas da FC tentasse estar presente num evento académico - fora do eterno "literatura de utopias", o beco entediante para o qual a academia portuguesa relega as ficções fantásticas, duvido que houvesse sequer reação...)
Discute-se, e há que fazer vénias a quem faz. O mais importante desta antologia é o atrevimento de existir, uma parceria entre três pequenas editoras europeias: a britânica NewCon Press, a finlandesa Osuuskumma, e a portuguesa Divergência, que se distingue pelo crescimento sustentado e excelência no trabalho de promoção e edição da FC e Fantástico portugueses. Graças a esta parceria, nascida na Eurocon, leitores de três países podem ler ficção escrita por outros. São nove contos, três de cada nação, representativos do trabalho dos escritores que colaboram com estas editoras. Steampunk foi o tema de partida, e, pessoalmente, espero que se esta iniciativa se mantiver, que os temas se diversifiquem.
O Chapéu Cilíndrico - conto de Anne Leinonen, utiliza a estética steampuk para contar, de forma eficaz, uma história que se passa em múltiplas realidades possíveis. As transições entre possibilidades estão brilhantes.
Augustine - no conto de J. S. Meresmaa, a ambiência steampunk é perfeita, invoca muito bem a sua estética de mecânica pesada retro. A história em si, uma variação da rapariga orfã enjeitada à mercê de familiares despóticos, também tem muito de melodrama ao estilo século XIX.
Isaac, o Homem Alado - conto muito ambicioso de Magdalena Hai, uma ambição que se sente mais pelo cuidado e abrangência do mundo ficcional do que pela narrativa em si, uma história sobre rebeles num ghetto que se socorrem de um homem que desenvolveu asas para se vingarem dos seus opressores.
O Jantar Ateniense - provavelmente, o texto mais fraco da antologia, apesar de abordar temas meritórios. Essencialmente uma espécie de conversa sobre clorofórmio e obstetrícia, envolvendo nomes da história da medicina. Não consegui de todo perceber onde é que a estética steampunk se encaixava neste conto.
Quatro Estações de Wither - George Mann é um escritor profissional, a trabalhar para os mais diversos franchisings pop mas também com voz própria, e isso nota-se na forma como é fácil apreciarmos este conto. Uma aventura dos seus personagens Newbury & Hobbes, detetives num universo steampunk, com a tumba de um criminoso morto durante uma investigação a ser canteiro de estranhas flores. Com pétalas metálicas e engrenagens, quando finalmente se propagam, formam o retrato da mulher que o criminoso amou num passado mais inocente. Bela mistura de policial vitoriano com um steampunk discreto.
Engenharia Imprudente - Jonathan Green é outro escritor profissional, também envolvido com franchisings pop, e a sua proposta para a antologia passa-se no seu mundo ficcional Pax Britannica. É a mais divertida história desta antologia, às voltas com os cérebros preservados dos génios britânicos que ainda estão ao serviço do império, mechas tipo transformer que se transformam de robot em locomotiva, uma batalha épica nas docas de Bristol entre guindastes e um robot gigante, e um final malévolo, com um cérebro (literalmente) em fuga a incorporar-se num corpo robótico e a iniciar um plano de domínio global. Não se pode ser mais steam, nem mais divertido, do que isto.
Vider Quam Esse - A contribuição do português Anton Stark é uma belíssima história inspirada na oferta de D. Manuel de um rinoceronte ao papa. Esse triunfo dos descobrimentos e do renascimento poderia não ter acontecido se o animal tivesse morrido ao chegar à europa, mas Stark coloca em campo um polímata português que o reaviva, com um misto de engenharia mecânica e magia negra. Um conto delicado e bem estruturado, que foge ao lugar comum do steampunk como recriação vitoriana e leva o clockwork ao renascimento (em bom rigor, época em que foram desenvolvidos muitos autómatos que surpreenderam e deliciaram as cortes europeias da época).
Coração de Pedra - Fui muito surpreendido por esta mistura de FC com steampunk de Diana Pinguincha. A evocação de tecnologias, os cenários invocados pelas palavras, são muito nítidos numa história ambiciosa onde uma jovem combatente descobre ser um ser artificial, o que lhe permite colocar um ponto final numa luta entre facções científicas e religiosas, posteriormente observando o progresso da humanidade até para lá do seu final.
A Aranha - Uma história cheia de ritmo de Pedro Cipriano, passada num mundo ficcional onde após a implantação da república o Norte se entricheira na monarquia. Uma jovem espia ao serviço da República tudo arrisca para roubar um segredo de estado. Como já é habitual para quem conhece o tipo de escrita deste autor, o ritmo narrativo mantém-nos agarrados até à última linha.