terça-feira, 7 de junho de 2016

Espíritos das Luzes


Octávio dos Santos (2009). Espíritos das Luzes. Alfragide: Gailivro.

No já diminuto campo literário da FC e fantástico português, a história alternativa é um nicho praticamente inexistente. É uma omissão curiosa, tendo em conta o rico filão da nossa história, tão passível de ser explorado em voos de especulação imaginária que podem ir muito para além de adamastores a dobrar o cabo bojador. Recentemente, Luís Corredoura mostrou isso com o seu Nome de Código Portograal, imaginando um país invadido pela Wermacht durante a II Guerra. Conheço pouco mais que isso, sabendo que Octávio dos Santos também tem dedicado alguns contos e este livro a este sub-género tão diminuto por cá.

Espíritos das Luzes imagina a Lisboa pombalina sob uma lente de Ficção Científica, numa espécie de cyber-barroco onde a iconografia do passado coexiste com o imaginário futurista. Recupera os périplos portugueses de William Beckford, cruzando-o com personagens marcantes do iluminismo português. Pombal, Marquesa de Alorna, Luísa Todi, o intendente Pina Manique, toques de De Sade e Cagliostro e um Bocage que (spoilers, caríssimos, mas não estou preocupado porque ao que parece nenhum leitor chega ao fim deste livro) se tornará um last action hero interdimensional são algumas das muitas personalidades histórias que ganham nova vida neste livro. Tal como Lisboa, a cidade pombalina a recuperar do terremoto, misturada com visões do que foi e do que poderia ter sido.

Este livro assenta sobre aquilo que, de forma muito óbvia, foi uma forte investigação sobre a época. A bibliografia e discografia que o encerra é muito interessante. Pega num momento marcante da história portuguesa e especula num misto de fantástico com Ficção Científica. Recupera na memória do leitor grandes vultos da cultura e política da época iluminista. Consegue invocar, ao longo dos capítulos, uma curiosa estética, misto da iconografia barroca com high tech. E, no entanto, falha redondamente. Porquê?

O elemento que torna esta leitura mais penosa é aquele que prometia ser o mais interessante. Alicerçado numa sólida base de conhecimento, o autor pretendeu ir mais além no utilizar dos personagens históricos, recorrendo aos seus discursos registados como diálogo no romance. Algo que poderia ter resultado muito bem, senão pela propensão do autor a despejar parágrafos e páginas inteiras dos escritos originais. A dissonância entre o ar retro-futurista e o contexto das citações é enorme, a começar pelo tipo de linguagem utilizada, e o leitor perde logo o fio à meada. A história, em muitos momentos, está feita à medida dos textos citados, percebendo-se que há situações criadas para encaixar citações específicas. Aqui, ajuda haver uma diferença de corpo de letra entre texto original e citação. Se queremos chegar ao fim do livro, depressa aprendemos a ignorar essas citações, que não contribuem em nada para o desenrolar da história.

Este carácter de inconsistência reflecte-se em mais aspectos. Cito um, que até me encantou (ao contrário de outros leitores deste livro, que o detestaram): a curiosa cosmogonia do universo ficcional deste devaneio cyber-barroco. Octávio dos Santos imagina os países da europa setecentista como planetas, interligados por vias galácticas sulcadas por passarolas. Confesso que é uma visão que me atrai, a recordar ilustrações novecentistas do sistema solar enquanto esferas nas mãos de malabaristas, invocando imagens de uma Lisboa barroca com passarolas gigantes suspensas nos céus. Tem o seu quê de fantasia mágica. O problema está na intenção expressa pelo autor no prefácio de afirmar este romance como um voo imaginário de Ficção Científica, campo que exige todo um outro tipo de construção de mundo ficcional, mais assente em pressupostos rigorosos do que num imaginário solto mais próximo da fantasia.

Nesta perspectiva, o imaginar de Lisboa como um espaço imenso, com as distâncias ampliadas em mega escalas, é outro elemento que também não funciona, especialmente para quem é lisboeta e não consegue conceber uma distância de dezenas de quilómetros do Terreiro do Paço ao Palácio Foz. Estas escalas também não são consistentes ao longo da narração. Umas vezes estão expressas, outras não (e francamente o romance funciona quando não estão).

É um tratamento que se mantém sempre que surgem elementos tecnológicos no livro, que aparecem sem contextualização, dando a sensação que estão lá só porque sim, porque pareceu bem meter nano-tecnologia dentro de uma paisagem barroca ou autómatos a reconstruir a Ópera do Tejo.

No meio de tudo isto, há uma história, um fio condutor que até tem interesse. Nesta Lisboa alternativa, o terremoto provocou uma fissura no espaço-tempo que mostra um vislumbre de uma outra Lisboa, arrasada pelo tremor de terra, onde as passarolas nunca voaram. É uma descoberta mantida no mais alto segredo, e caberá a Bocage atravessar a fissura para explorar essa Lisboa que é a cidade real que bem conhecemos. É uma história que só compreendemos ao chegar ao final do livro. Há uma indecisão constante entre este ser um romance-périplo por uma Lisboa imaginada a partir da matriz pombalina e o tal segredo que concluirá a narrativa. Na vertente périplo, consegue pontos de interesse, na recriação da Ópera do Tejo ou no infame capítulo onde a sensualidade mordaz da poesia de Bocage é explorada num boudoir subterrâneo do Café Nicola. Um capítulo divertido na sua perversão e sanidade mental questionável, que merece ser lido. A sério, atrevam-se.

Gostaria de ter chegado ao final desta leitura com uma opinião contrária às que tenho ouvido sobre esta obra. Infelizmente, não consigo. O livro tem alguns elementos intrigantes, mas perde-se nas inconsistências. Fico, pelo menos, com o registo de ter sido dos poucos leitores que foram capazes de levar a leitura até ao fim...