quinta-feira, 9 de junho de 2016

Dellamorte Dellamore



Tiziano Sclavi (1991). Dellamorte Dellamore. Milão: Camunia

Dylan Dog é um dos mais intrigantes e interessantes personagens de fumetti, praticamente desconhecido de um público português mais habituado a entender BD italiana como a sensualidade de Manara, o aventureirismo de Pratt ou o western clássico de Tex. O indagatori dell'incubo foi criado por Tiziano Sclavi para a casa editorial Bonelli, escritor que assina também algumas centenas de argumentos que se distinguem pelo sentimento de terror e fantástico, bem como uma fortíssima erudição no género.

Antes de Dylan Dog, Sclavi escreveu este lendário Dellamorte Dellamore, livro raro e hoje impossível de encontrar. Os mais conhecedores de fumetti e Dylan Dog afirmam que está neste livro a génese do personagem. Talvez, embora entre o Francesco Dellamorte do livro e o Dylan do fumetti as semelhanças se fiquem pelo aspecto físico e o serem protagonistas de histórias de fantástico e terror.

A colisão entre terror e surrealismo é constante neste livro, que pega nas premissas elementares dos contos de terror e as revê com uma estranheza de sensibilidade que, para mim, estará sempre associada à ficção italiana (do pouco que dela conheço, entenda-se). Dellamorte Dellamore leva-nos à cidade de Buffalora, terra pacata, isolada e levemente decadente do interior italiano. Terra que é assolada por uma bizarra praga. No seu cemitério, os mortos recém-enterrados têm o irritante hábito de regressar como zombies ao fim de sete dias. Francesco Dellamorte é um coveiro com a tarefa dupla de aniquilar os mortos-vivos, voltando a enterrá-los. Um guardião do cemitério e da sanidade da vila, que conta com um ajudante com sérios problemas de aprendizagem, capaz de pronunciar unicamente o vocábulo gna em infindas variações tonais.

O livro constrói-se numa série de vinhetas que nos levam à dinâmica gótica deste guardião de cemitérios. Dellamorte não é nem herói nem anti-herói, age de forma inconsistente. Tanto se apaixona como assassina, e por vezes compadece-se dos mortos vivos e não lhes dá o tiro de misericórdia para o descanso eterno. O mundo exterior não parece existir, estando todo o ambiente centrado numa comunidade cuja singularidade e estranheza não é a da maldição que paira sobre o seu cemitério mas no óbvio isolamento, como se de um mundo à parte se tratasse.

O terror clássico, o surreal e a ironia entrelaçam-se neste romance estranho, de um horror onírico. A linguagem clara de Sclavi invoca imagens mentais vívidas que colidem com as inversões inesperadas da narrativa. Para quem conhece a obra de Sclavi enquanto argumentista de Dylan Dog, este romance de culto mas infelizmente pouco conhecido não surpreende. Foi adaptado ao cinema, num filme fiel ao livro, igualmente poético e surreal de Michelle Soavi.