terça-feira, 29 de março de 2016

A Provocadora Realidade Dos Mundos Imaginários

 

António de Macedo (2016). A Provocadora Realidade Dos Mundos Imaginários. Estoril: Editora Épica.

Não sendo um livro de textos originais, esta edição marca o regresso que já tardava de António de Macedo às livrarias. Algo que gostaria de poder dizer não ser fugaz, e limitado a esta edição, mas que trouxesse ao público outras obras que o autor e cineasta confessa ter prontas e a aguardar editor que por elas se interesse. É algo triste, observe-se, quando uma das maiores figuras vivas da cultura portuguesa do século XX (e do XXI, claro) tem ainda dificuldade em editar as suas obras. O estigma das culturas de género está vivo e viçoso, neste meio cultural tão lesto em premiar popularidades vazias, ou as redes cerradas dos mesmos de sempre que escrevem sempre as mesmas coisas, em detrimento de quaisquer outras expressões.

A Provocadora Realidade Dos Mundos Imaginários colige textos e ensaios previamente publicados em várias edições da revista Bang!, a única publicação periódica regular dedicada à FC e Fantástico que por cá se vai editando. Sublinho que este comentário não pretende depreciar os esforços independentes, especialmente na internet, e que a própria revista tem dado alguns sinais de estagnação temática, com o cada vez mais forte lado de auto-promoção das edições da editora que a sustenta. Um aspecto que tem de ser aceitável, uma vez que as edições gratuitas têm de se financiar de alguma forma, mas que se começa a tornar excessivamente preponderante. O bom da Bang!, para além de alguma ficção, é ser um espaço de publicação de ensaios temáticos que avançam a discussão sobre as diferentes vertentes do fantástico nas artes. Foi daqui que saíram os textos deste livro de Macedo.

Os temas dos ensaios são um verdadeiro mimo para os fãs destes géneros. Neste livro, encontramos invocações ao fascínio das arquitecturas feéricas das cidades imaginárias; o misticismo de livros que nunca existiram, que não querem ser escritos, ou não podem ser lidos; ou dos livros falsos que são tomados como verdadeiros, com consequências nefandas documentadas na história; ou uma comparação entre A Sibila de Bessa-Luís e Alraune de Hewers. Encerra com esse monumental documento que é Os Mundos Imaginários do Fantástico Português, apontamento de história literária que faz uma crónica possível da evolução da literatura fantástica em Portugal, dos romances de cavalaria medievais aos autores do início do século XXI. São doses de sabedoria histórica e literária, de ligações entre ideias, de amor às ficções fantásticas, contadas com uma tolerância admirável e saudáveis doses de bom humor. Aliás, basta ler os primeiros parágrafos do prefácio do livro, na referência de Voltaire ao género ennuyeux, logo temperada pela abertura de ideias aos diferentes gostos literários, mesmo àqueles que nos parecem enfadonhos. Este espírito tolerante é raro de encontrar nas trincheiras do gosto pelos livros e leitura, com os fãs de um e outro género a defender a sua dama sem admitir, mesmo que secretamente o façam, as virtudes das damas a que se opõem.

Não consigo deixar de fazer uma breve referência às histórias turvas por detrás desta edição. Quando António de Macedo anunciou este livro, a edição seria da Saída de Emergência, mas o editor listado nas referências bibliográficas é uma certa Editora Épica. Esta trata-se, aparentemente, de uma chancela da SdE dedicada à auto-edição paga. Aquilo que comummente se chama de vanity press, e cuja revelação teve um forte impacto negativo junto das comunidade de fãs, leitores e autores. É, de facto, muito inesperado ver a SdE, editora de referência no fantástico, a apostar num mercado que pseudo-editoras como a Chiado têm mostrado ser de lucro fácil e farto. O catálogo nascente desta nova pseudo-chancela mostra autores que nada têm a ver com este fenómeno da auto-edição. Fica-se com a suspeita que este livro de Macedo, em termos estritamente comerciais, tenha o seu quê de legitimador e chamariz para atrair clientes, aspirantes a autor publicado, a este modelo de negócio. A Alexandra Rolo, no seu blog, desmonta isto muito melhor, e mais pacientemente, do que eu faria.

No entanto, independentemente das histórias pouco claras sobre a sua edição (e às quais o autor é alheio), o que nos fica nas mãos é um coligir de alguns interessantíssimos textos de uma das personalidades mais incómodas da cultura portuguesa do século XX. Incómoda, não por rebeldias anti-establishment, mas por ter ousado afirmar um gosto por temas ficcionais tidos como menores, com um impacto profundo na sua carreira como cineasta. Resta saber se a outra obra que Macedo tem na calha, Lovesenda ou O Enigma das Oito Portas de Cristal, que o autor tem revelado excertos nas redes sociais, encontrará editor que a traga aos leitores. Esta, e outras. Aposto que nos discos rígidos de Macedo há muitos textos à espera de tangibilização em papel impresso...

(Com um enorme agradecimento ao autor por me ter enviado, inusitada e inesperadamente, uma cópia desta edição. Ainda não tinha iniciado a ronda pelas livrarias à procura deste livro. Não imaginam a surpresa alegre que foi, depois de um longo e recompensador dia às voltas com impressoras 3D e educação no espaço Sala de Aula do Futuro na Futurália, onde só o estar lá presente já era motivo de honra e alegria, chegar a casa e dar com um inesperado pacote dos correios, com esta maravilha lá dentro. Há dias fantásticos!)