quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Macunaíma


Mário de Andrade (2015) Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Isto é o périplo do anti-herói, pensei ao longo desta leitura cómica mas muitas vezes indecifrável. É curioso como espelha em inverso a estrutura delineada por Campbell onde um protagonista de altos valores morais viaja ao longo de sequências de aventura até concretizar o objectivo final. Aqui é o oposto. O herói deste romance clássico da literatura brasileira publicado em 1928 é um personagem sem carácter, vivendo apenas para o seu prazer e impulsos, capaz de mentir, trair, matar, vigarizar, enganar, que deixa atrás de si um rasto de pessoas destruídas e mulheres atraiçoadas. A sua sucessão de aventuras dará em nada, sem objectivos, moral vencedora, ou recompensas.

Desenganem-se se pensam que este é um jogo intelectual de inversão dos pressupostos da literatura fantástica. Macunaíma trilha outros caminhos, sendo um romance do alto modernismo brasileiro. Respira uma mistura de profundo tropicalismo, colidindo raízes portuguesas, africanas e índias num romance que afirma que a falta de carácter brasileira advém da inexistência de uma identidade própria civilizacional. Mas também não é um romance patriótico e panfletário. É, de facto, uma colisão inspirada em lendas índias com a modernidade dos princípios do século, profundamente surrealista na sua estrutura (ou falta dela) e altamente modernista no uso da linguagem. Este aspecto torna-o algo impenetrável. Mário de Andrade não poupa o leitor com o uso e abuso de expressões e nomes em línguas índias ou crioulas. É fascinante, mas para quem não seja brasileiro, quase incompreensível em muitos momentos.

Há uma história linear enterrada debaixo da surreal sucessão de episódios escabrosos. Macunaíma é um índio que desde que nasce revela a sua falta de carácter. Uma paixão poderia ser a sua redenção, mas a mulher morre no parto de um filho também morto, e o objecto que mais preza, uma pedra dada pela sua amada, é roubada por um gigante aristocrata comedor de gente. Macunaíma parte da sua aldeia em direcção à grande cidade de S. Paulo, em busca de uma vingança que quando a obterá não lhe irá trazer redenção. Pelo caminho, que nisto das viagens o que interessa é o percurso e não o destino, fica um registo de impertinentes libertinagens de fazer corar os mais irreverentes libertinos.

Romance do modernismo brasileiro que parte da riqueza da mistura de tradições culturais indígenas, africanas e europeias para rever uma antiga lenda índia à luz do surrealismo, Macunaíma vive também de criatividade linguística alicerçada dos dialectos e patois das falas do povo, longe do normativo erudito. As constantes referências ao património das lendas indígenas tornam-no também numa obra com um forte toque de literatura fantástica.