quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Comandante Serralves: Despojos de Guerra



Carlos Silva et al (2014). Comandante Serralves: Despojos de Guerra. Imaginauta.

Um livro corajoso. O panorama contemporâneo do fantástico literário português é vibrante, embora nos pareça pequeno. Estamos em Portugal, e por cá tudo nos parece pequeno. Vibrante, mas com autores mais interessados em desenvolver obra nos domínios da fantasia ou sobrenatural. Não que dai venha mal ao mundo. São bem vindos, e quanto mais melhor, mas para aqueles que se sentem mais intrigados com a reflexão do impacto da ciência e tecnologia no modo de conceber o mundo que nos rodeia falta qualquer coisa. Novos escritores transreais, de fantasia clássica ou urbana e sobrenatural há. As colectâneas e contos online multiplicam-se. Mas falta a ficção científica. E é por isso que este livro é corajoso, ao desafiar escritores a experimentar criar FC em português. Porque o género não tem de começar e acabar em João Barreiros. Não se esgota neste escritor, claro, mas é o nome incontornável quer pela qualidade quer pela tenacidade. Livros como este mostram a vontade de sangue e ideias novas no género. Esperemos que seja uma experiência que dê frutos.

O dar frutos é um dos grande objectivos do projecto. Ambicioso, parte de um universo partilhado de contornos definidos mas com imenso espaço para a imaginação. Os contos são o ponto de partida de um conceito que se quer afirmar no espaço transmedia, sublinhando a sua coragem e ambição. Bem concebido, o universo partilhado de Comandante Serralves está muito bem explorado nesta sequência de contos que, respeitando a ficção científica enquanto se deixam levar pela aventura, são metódicos na forma como desvendam ao leitor os elementos que constituem este universo ficcional.



Aviso à navegação: os apontamentos de leitura que se seguem contêm spoilers, coisa tremenda para aqueles leitores que, focalizados no enredo, lêem apenas para ficar a saber o final da história.

Métodos de Evasão, Carlos Silva: Que melhor forma haverá de nos introduzir ao intrépido Comandante Serralves do que mergulhar-nos numa das suas arriscadas missões, em que este se deixa capturar pelos seus inimigos para poder salvar a companheira, presa na órbita de Júpiter numa nave roubada à Aliança que combatem. Não só nos apresenta a personalidade aventureira larger than life do Comandante, como nos dá os primeiros enquadramentos do seu mundo ficcional, onde rebeldes aguerridos combatem a Aliança totalitária que sucedeu às Nações Unidas, no rescaldo de uma guerra que opôs a humanidade à invasão dos alienígenas Pahoehontes. Este conto sólido marca à partida a antologia, com o seu ritmo marcado entre aventura e construção do ambiente narrativo.

Sinais, Vítor Frazão: O tom de space opera exótica aprofunda-se neste conto onde Serralves revela o seu lado mais obscuro, capaz de violentas missões tão secretas que nem os seus companheiros podem saber delas. É também uma esplêndida história de ambientes, mergulhando o leitor numa cidade exótica que protege a sua liberdade em túneis e grutas da selva vietnamita. Fiel ao tom da antologia, é uma narrativa em ritmo de acção, que nos desvenda mais alguns segredos do universo ficcional. Ficamos a saber o segredo da longevidade do Comandante, com uma tecnologia alienígena que o transmite para outro corpo quando o corrente anfitrião está em estado terminal, bem como outros pormenores que enriquecem o mundo ficcional da série.

Dodgson, Inês Montenegro: O segredo da longevidade do Comandante é intuído no conto anterior, sendo este aquele que se constrói à volta deste elemento narrativo. Após uma missão falhada, a consciência de Serralves irá ocupar outro corpo, desta vez o de um homem ligado a uma facção rebelde que pretende construir uma bomba temporal que reverta o tempo aos momentos que antecedem o catastrófico nascimento da Aliança. Este carácter metódico de expansão dos conceitos que sustentam este universo ficcional sublinha um pormenor importante que confere solidez a este mundo partilhado. Os elementos não nos são revelados à partida e cada novo conto é mais do que uma aventura do personagem, trazendo-nos novos dados que o aprofundam.

Despojos de Guerra, Carlos Silva: Se o conto anterior aprofunda mais um elemento do mundo ficcional, este monumental conto é um infodump muito bem construído que desenvolve muito o universo do Comandante Serralves. Tão bem construído que não damos por ele, no meio de uma imparável acção que nos leva de um ataque pirata a uma nave de transporte de carga à superfície venusiana, onde se ocultam os perigosos destroços de uma nave alienígena. Pelo meio temos cenas de acção pura no espaço e uma obrigatória visita a um mercado negro numa cidade flutuante venusiana, local onde os mais indizíveis vícios e necessidades encontram satisfação pelo preço certo. Continuando a sublinhar a forma metódica como os elementos que compõem este mundo ficcional vão surgindo, é neste conto que temos o primeiro vislumbre da nave Maria, o artefacto alienígena onde Serralves viaja pelo sistema solar.

Das Eigentum, Ana Ferreira: Sabemos que parte do universo Comandante Serralves assenta sobre uma invasão alienígena, mas até agora ainda não nos foram dados mais do que pequenos vislumbres dos invasores. Este conto muda isso, centrando-se no que são os Pahoeontes e no porquê da sua invasão, algo que tem a ver com a destruição da ecologia do seu planeta natal. Toda a história gira à volta de um alienígena sobrevivente, escondido numa lixeira terrestre, atazanado por crianças das quais se recusa defender, tentando interpretar o mundo através de um tradutor automático. Mais do que conto que adensa o mundo ficcional, é uma curiosa reflexão sobre diferenças linguísticas e a impossibilidade de compreensão profunda de algo que nos é estranho, apesar das melhores traduções.

A Guerra Esquecida, Joel Puga: Há um certo sabor de Indiana Jones neste conto em que Serralves reencarna no corpo de uma rebelde nórdica, cuja célula está a investigar uma missão secreta da Aliança. Perto do círculo polar árctico, investigadores de uma organização secreta dedicada a investigar tecnologia alienígena deparam-se com uma base de tecnologia avançadíssima, mas estranhamente de origem não extraterrestre. Parece que os Pahoeontes já tinham feito uma tentativa de invasão nos tempos da mítica Atlântida, e que os atlantes dispunham de armas capazes de os derrotar. A possibilidade da temível fonte de energia que ainda continua activa ao fim de milénios cair nas mãos da Aliança faz com que os rebeldes se sacrifiquem para a destruir. Para além de expandir no tempo o universo ficcional da série, este conto detalha-nos como Serralves se reencarna, graças ao sacrifício de uma enorme rede de voluntários que dispõem de nano máquinas implantadas que se activam ao receber a consciência de Serralves.

Static Falls, Rui Leite: a encerrar a antologia, um conto que explora de forma diferente o universo ficcional de Serralves, numa história sobre uma colónia perdida no sistema solar. Os seus habitantes vivem na ilusão que são os únicos sobreviventes de uma guerra nuclear, acreditando que estão na Terra, rodeados de um deserto radioactivo. Não imaginam que a cidade construída como réplica de uma vila americana dos anos 50 é na verdade um asteróide protegido por uma redoma, com a informação estritamente controlada por uma rede neuronal que abriga a consciência do fundador da colónia, um milionário dos tempos pré-alianca. Numa missão diplomática, Serralves irá cruzar-se com este peculiar mundo fechado. O sentimento de paranóia e percepções controladas por entidades exteriores tem o seu quê de influência da obra de P. K. Dick.