sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O Pátio das Cantigas


Surpreendeu-me este filme não ser tão mau como esperava. A fotografia é muito boa, e a cinematografia caracterizou-se por algumas cenas muito bem filmadas, especialmente num bem conseguido tracking shot no meio de uma festa dos santos populares. De resto, é o que se espera de um produto comercial pensado para o mercado da nostalgia. Aposta de lucro certo ao reunir nomes conhecidos dos media pop em registo de comédia leve com acenos ao cinema popular clássico português. O argumento pega na base icónica do filme original, salpicando-o com uma modernização que apela à imagem tão em voga de uma Lisboa típica enriquecida com lojas gourmet e tuk tuks como destino típico para turistas, de preferência gay em hostels, para ser ainda mais hipster, com pitadas de multiculturalismo para parecer mais contemporânea. Tenta ir mais longe, procurando aprofundar as histórias das vidas das personagens unidimensionais, aí falhando por completo. Já essa imagem de Lisboa empreendedorista no pós-crise financeira doura a amarga pílula da especulação imobiliária desenfreada, da transformação dos espaços públicos em parque temático típico para turistas, ou a avalanche de tuk tuks carregados de turistas alcoolizados a trepar pelas colinas da cidade. Algo que neste filme parece saudável e desejável, retratado com sorrisos e as cores garridas dos santos populares.

Com a sua premissa e tipo de personagens é quase impossível que os actores tenham um péssimo desempenho. Não é preciso esforçarem-se muito ao declamar as linhas supostamente hilariantes dos diálogos. Fazem-no da mesma forma como nos habituaram na televisão. Grande parte dos papéis está atribuído a comediantes da nossa praça, que no fundo se representam a si mesmos ao interpretar as personagens. Difícil falhar, com a fasquia tão baixa. Miguel Guilherme ainda se esforça um pouco, tentando replicar o estilo icónico de António Silva (o nome clássico da comédia tradicional portuguesa), mas ao fazê-lo entra em overacting profundo que, ou por falha dele ou do realizador, não transmite a ironia pretendida. Digamos que ao fazê-lo soa a alguém com algo maciço espetado num local pouco confortável do corpo. Restam ainda umas carinhas larocas com corpo a condizer para fazer o papel de interesses amorosos/sexualizados e arregalar os olhos machistas dos actores e espectadores. Algumas das quais já vi em teatro e são excelentes actrizes, mas que neste filme são reduzidas a corpos de formas sesnuais.

(Escrevi supostamente hilariantes porque sou imune à maior parte da comédia que por cá grassa. Lamento, devo mesmo ser um tipo sisudo, incapaz de se rir com as graçolas dos sketchs televisivos, as piadas stand up ou o hipsterismo do Canal Q.)

A regressão tradicionalista dos papéis femininos foi algo que me deixou de boca aberta neste filme. As mulheres só servem como interesse amoroso, de preferência com dotes culinários, ou objecto sexual que procura fama fugaz. Estamos a falar de um filme que se safa com uma piada destas: um personagem, ao pedir a mão da mulher que o ama em casamento, não resiste a observar que por esta ser divorciada já é produto em segunda mão. Ela ri-se, o público também. Eu fiquei boquiaberto. A cultura do piropo, também bem patente na história, ainda pode ser defendida como caricatura do popularucho. Uma piada destas é apenas ofensiva. Dito isto, há no filme uma boa piada, sobre DJs e pens que fazem todo o espectáculo.


Não é a única má piada do filme, mas é a que sublinha melhor a incapacidade assumida e intencional de olhar para todo o contexto do filme original, valorizando aquela nostalgia do tradicionalismo portuguesista tão querida ao Estado Novo com roupagens contemporâneas. Recordemos que as comédias clássicas do cinema português, mais do que produtos de entretenimento, tinham uma vertente de propaganda ideológica destinada a veicular os valores do portuguesismo apreciado pela ditadura. A tradição pitoresca, o travar de ambições vistas como desmedidas, o manter as coisas como estão, a noção de portugal dos pequenitos. Para mim, uma das cenas mais sublimes do Pátio das Cantigas original é aquela em que Vasco Santana, a meio de uma briga de bairro, abriga as crianças numa barca chamada Salazar enquanto lhes diz que ali estão seguros e protegidos. A subtileza disto diz tudo. Já o novo filme não decai a níveis tão óbvios. Não há barcas chamadas Passos Coelho para proteger os infantes. Fica-se mesmo pela apologia do ideal empreendedorista que nos têm enfiado à força pela garganta abaixo nos últimos anos.

Até o tracking shot que admirei sofre de racismo e boçalidade. A câmara acompanha um habitante indiano do bairro, que atravessa a festa sempre a perguntar qualquer coisa em hindi. Ninguém o percebe e dão-lhe as respostas mais estapafúrdias. Yep. Filme popular no portugalito do século XXI  tem de gozar com minorias e etnias, bem como ter gajas boas para arrebitar os espectadores. No cinema, o público ria-se.

É impossível não reparar como se tornou possível fazer um filme revivalista destes nos tempos que correm. Sintoma do retrocesso social nos valores e direitos para um conservadorismo bafiento com referência num certo passado dourado que, para a maioria da população, nunca o foi. Coisas do espírito dos tempos. Este filme não é nem pretende ser uma caricatura irónica exagerada que nos leva a reflectir sobre o ridículo e o lado negativo da herança de um passado ditatorial que nos últimos tempos anda a ser revisto com cara lavada. Algo que, por exemplo, Capitão Falcão faz de forma magistral.

Tentando renovar um clássico em registo bem intencionado mas superficial, consegue apenas ser uma suposta comédia leve e desconexa, com actores que se representam a si próprios, não fugindo à sua imagem de marca como cómicos do mercado.  Salva-se a fotografia, que faz jus à iconografia típica dos bairros lisboetas nos santos populares, fazendo brilhar a Vila Berta na Graça com aquele tom acobreado da luz lisboeta ao final da tarde. A cinematografia tem momentos muito bons mas descamba ao serviço de uma montagem que a partir do meio do filme começa a querer resumir muito perante o entrançar de demasiadas linhas narrativas. Termina de forma inexplicável com uma cena ao estilo Bollywood, que apesar de bem filmada foi claramente criada só porque sim e porque parece que é fixe. Em suma, é o que se espera, produto assumidamente comercial que puxa pela cultura da nostalgia para lucrar. Terá bom impacto nos balancetes, mas impacto nulo na cultura. Negativo não digo, porque não acredito na dicotomia cega entre cultura elevada e baixa, e por nariz empinado que seja não acho que tudo o que se vê, ouve e escreve tenha de ser evangelizador dos altos valores estéticos. Este Pátio das Cantigas é o que é, destina-se a ser destacado até à exaustão pelos media comerciais até aparecer novo produto similar.

Bolas, para mau filme até despertou um texto longo. Fui vê-lo por razões familiares. Depois de adormecer com um dos Hobbits, o que até é compreensível, ou ficar nada impressionada com Gravity em IMAX 3D, desisti de trazer a minha mãe ao cinema sem ser para filmes ajustados ao seu nível demográfico. Ela saiu de lá a sorrir, com isso diria que valeu a pena o ordálio a que me submeti. Ao contrário do que esperava, o nível de imbecilidade não provocou suicídios colectivos dos meus neurónios, e monte de esterco por monte de esterco, a experiência de ver uma coisa ofensiva e patética como A Gaiola Dourada foi bem pior que isto. E com este parágrafo final consigo manter imaculado o meu street cred de elitista cultural de nariz empinado com foco na ficção científica e até fazer passar uma imagem quase humana, com o seu quê de carinhoso. Ah, já me ia esquecendo. Devo dizer que adorei estar sentado ao lado de um grupo de betos normalóides que adoraram tanto o filme que o transformaram numa experiência interactiva, com gargalhadas encimadas de comentários de muito bom, muito bom de piada em piada. É sempre interessante, num sentido antropológico, ver que há mesmo pessoas que gostam e vibram com estas coisas. Fica-se a conhecer melhor o largo espectro do comportamento humano.