terça-feira, 28 de abril de 2015

Capitão Falcão


Por onde começar? Talvez por dizer finalmente. Há anos que circulava pelos festivais ligados ao fantástico um divertido teaser para uma proposta de série televisiva que encantava quem o via mas parecia nunca mais conseguir passar disso. Sabemos que Portugal é um país inclemente para ficções de género e que os media tradicionais preferem reality shows, concursos e telenovelas. Admirável, a persistência da equipa, mas pensei que se ficasse por um eterno vaporware, mais uma promessa do que poderia ser mas que nunca aconteceu. Até que vi os cartazes e o forte investimento publicitário neste filme. Conseguiram concretizar a promessa, não em mini-série televisiva mas como filme. E ainda bem. O público, quer o mais ligado aos géneros quer o grande público, ficou a ganhar.


Quanto ao filme, é exactamente aquilo que quem conhecia os teasers esperava. Fortemente estilizado, intencionalmente exagerado, sátira ao antigo regime misturado com vénia aos super-heróis clássicos da Golden Age. O herói fascista Capitão Falcão e o seu companheiro Puto Perdiz são uma óbvia e assumida mistura do Batman e Robin campy dos anos 60 com Green Hornet. Todo o filme é um elogio à estética berrante e inocente da filmografia de série B. É um decalque que funciona muito bem por ser assumido e desprendendido. A história satiriza o nostalgismo estado-novista com um personagem acima de tudo fiel ao presidente do conselho de ministros, capaz de com o seu eficaz porrete travar as insidiosas ameaças dos perigosos comunas, decadentes liberais, libertários Capitães de Abril e demais ameaças à estabilidade da lusa pátria e nação. Uma história que decalca o simplismo dos comics de super-heróis com uma corrosiva e fervilhante ironia à história de um Portugal recente que muitos gostam de olhar com uma nostalgia branqueadora.

A excelência do argumento, divertido, ritmado, assumidamente previsível e a brincar muito bem com todos os lugares comuns quer do género quer da época fascista é complementada pelos aspectos técnicos do filme. A cinematografia é fantástica e a fotografia acompanha-a. Pessoalmente fixei os raccords temporais com as Portas do Sol ribatejanas ou a intencionalmente má montagem do Capitão a conduzir a sua mota com sidecar sob imagens de ângulo mal sincronizado de movimento na estrada. Mas há muitos outros momentos destes. Até porque este filme não descura pormenores. A direcção de actores mantém a credibilidade em ambiente de exagero e Gonçalo Waddington, como protagonista, passeia-se muito bem nos campos do exagero absurdista com uma cara de pau impressionante. Destaque também para as coreografias das cenas de luta, a cargo da MadStunts, muito acima do que se esperaria por cá. A realização de João Leitão é impecável.

Esta talvez seja uma das melhoras formas de comemorar os 41 anos do 25 de abril. Sendo um filme feito por fanboys que deixa os públicos de fanboys deslumbrados, é suficientemente divertido para cativar outras audiências e, esperemos, sustentar-se. Tendo em conta o tocar num ponto sensível da história contemporânea e ser um filme de estilo pouco usual no panorama cinematográfico português, estou surpreendido por não ver uma aliança de revisionistas/saudosistas dos tempos da velha senhora e estetas do fílmico nacional-sublime a insurgir-se contra este filme tão fresco, de estética tão marcante, influências vincadas de género e que de piada em piada nos vai recordando o cinzentismo monolítico do estado novo. O absurdismo desperta o pensamento e enquanto vemos paradas de moços da mocidade portuguesa ou o Capitão a dar tau tau em feministas percebemos este exagero tem raízes históricas bem conhecidas e podemos hoje sorrir em liberdade com os anacronismos de uma ditadura provinciana que manteve Portugal mergulhando durante mais de quarenta anos no obscurantismo.

A não perder, esta pedrada no charco do cinema nacional, que consegue ter um pé no género e outro no popular sem perder o equilíbrio. Aliás, tendo em conta a mediocridade dos recentes filmes do género fantástico portugueses (a âncora transmedia que é Collider e o passeio de canastrões de RPG), diria que é imperdível e marcante para a cultura do fantástico e ficção científica nacional. Mas já sabíamos disso há anos. Felizmente confirmou-se.