quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Twelve Tomorrows


Bruce Sterling (ed.) (2014). Twelve Tomorrows. Cambridge: MIT Technology Review.

Surpreende o carácter inconclusivo de muitas das histórias desta antologia editada por Bruce Sterling. Quando terminam sentimos sempre que falta o resto. Seguimos a lógica do conto e o seu final não a termina. Algo que faz todo o sentido numa antologia destas. O futuro é um ponto de interrogação, o extrapolar de tendências especulação informada. Não há conclusão porque tal não é possível. Como se costuma dizer, só o futuro o dirá.

A antologia em si é uma dream team de escritores cyberpunk e hipermodernos. Sterling, guru da vanguarda tecnológica, traz consigo Pat Cadigan, William Gibson, Cory Doctorow, Lauren Beukes e Warren Ellis. É muito difícil imaginar um alinhamento de pesos mais pesados da FC contemporânea.
A única concessão à FC clássica está na galeria de trabalhos de John Schoenherr, visões típicas de futuro dos anos 80 e 90 do século XX.

Slipping - Lauren Beukes traz-nos a sensibilidade globalista num conto sobre manipulação do corpo através de próteses tecnológicas. Neste conto uma jovem sul-africana viaja até ao Paquistão para participar numa competição muito especial: uma corrida onde só participam atletas modificados com próteses robóticas. Os atletas são de facto demonstrações de capacidades técnicas e médicas, um pouco como veículos de uma fórmula um que substitiu a falibilidade do corpo humano pela resistência do metal e fibra de carbono. Desumanizados, estes verdadeiros cyborgs representam a vanguarda grotesca da expansão das capacidades humanas. Detecta-se aqui uma pontinha da história do primeiro atleta a participar nos jogos olímpicos com próteses mecânicas, o sul-africano Oscar Pistorius. Já o futurismo de Beukes mostra uma mentalidade formada em zonas de fluxo entre o tecnicismo optimista ocidental e a dura realidade dos países do terceiro mundo.

Countermeasures - Christopher Brown dá-nos qualquer coisa que eventualmente toma a forma de uma história mas que se resume a um infodump amarfanhado de especulações sobre o futuro da hipervigilância e as forças de pressão de descentralização governamental. É interessante pela visão de drones com inteligência artificial entedidados que se dedicam a explorar cripto-dinheiro durante os longos voos de vigilância, hackers ao serviço de organizações sombrias capazes de influenciar percepções através de memes virais propagados pelas redes, e aquela visão libertária de fragmentação dos estados-nação a favor de coligações flexíveis de cidadãos. A quantidade de conceitos largados no conto é enorme, e suspeito que tenha sido por isso que Sterling escolheu este conto para a antologia. Afinal, a prosa do editor também se rege por esses princípios, apesar de conseguir coalescer fios narrativos a partir dos fiapos de futurismo.

Business as Usual - Pat Cadigan, maestrina do cyberpunk, actualiza-se para  a pervasividade da internet da coisas. No seu futuro objectos inteligentes interconectados são ubíquos, as seguradoras tornam obrigatória a instalação de sistemas de monitorização de saúde e bem estar aos seus clientes. A sua personagem é uma designer de interfaces que na economia hiper-liberal de jogos de soma zero se resigna a servir de assistente de linha de ajuda para dispositivos com problemas. As coisas tornam-se estranhas quando começa a receber chamadas de um frigorífico que sente que ao limitar o acesso do seus donos à comida, cumprindo os normativos da companhia de seguros para uma vida saudável, está a interferir nas liberdades dos indivíduos. Que, como é óbvio, é o que este frigorífico existencialista está programado para fazer, e é esse o cerne desta parábola: as benesses trazidas pela monitorização ubíqua dos dados vitais podem ocultar um novo totalitarismo assente na eficiência económica. Essa é uma ideia que vai sendo discretamente discutida em paralelo com os hiperbólicos sonhos sobre a internet das coisas.

Petard: A Tale of Just Deserts - Parece que Cory Doctorow fez crescer o w1n5t0n do seu Little Brother neste conto. O foco é o mesmo do romance, como usar a tecnologia para combater o autoritarismo. Mas aqui há mais cambiantes do que no necessário simplismo da literatura Young Adult. A personagem de Doctorow combate não os grandes males mas a banalidade da incrustração progressiva de restrições e degradações de serviço que se transformam em novo normal. Essa visão, a que de aceitamos rotineiramente pequenos detalhes negativos que acumulados geram injustiças ou restrições às liberdades que se impostas de uma vez despertariam a ira mas que ao ser introduzidas a conta-gotas nos insensibilizam é a peça central do conto. Este termina de maneira muito intrigante, com o personagem principal, hacker libertário construtor de redes distribuídas anti-corporate se rende à curiosidade sobre os algoritmos de big data de uma empresa que representa tudo aquilo a que se opõe.

The Shipping Forecast - O que impressiona no conto de Warren Ellis não é a história em si, um fragmento inconclusivo sobre uma agente secreta contratada para eliminar uma promissora tecnologia disruptiva que nunca nos chega a ser revelada. É a ambiência deprimente de um normal catastrofista, onde espaços urbanos se flexibilizam em função da videovigilância, as vagas de empreendedorismo especulativo dessangram a vitalidade das promessas da economia empreendedora que as gera, o aquecimento global altera os habituais padrões climatéricos, nas ruas de Londres travam-se lutas entre o ritmo de condução dos carros robots e a fúria dos condutores humanos que não conseguem antever as acções de estrada dos algoritmos ao volante. Ellis é um futurista consumado que não se deixa levar por cinismos nem por deslumbramentos, tecendo parábolas sobre um catastrofismo socialmente induzido que soa a futurista mas está muito próximo da realidade contemporânea.

Persona - E se, pergunta Joel Garreau no seu conto, se em vez de telepresença tivessemos múltipla presença, com clones corporais cujas personalidades no final do dia se sincronizasse com a do seu dono? O conto não vai pelo caminho das personalidades fragmentadas, preferindo reflectir nos impactos da investigação biotecnológica em tecnologias aumentativas. As considerações éticas ficam para segundo plano face às pressões comerciais e militares para criar pessoas com vantagens tecnologicamente assistidas sobre os restantes.

Death Cookie/Easy Ice - William Gibson com um shot de futurismo de proximidade, a oscilar entre o hiper-moderno e o surreal, com um conto sobre uma estrela pop que se atira, vestida apenas por tatuagens inteligentes, sobre a ilha artificial criada pela acumulação de plástico nas correntes oceânicas no pacífico sul. Os canibais mutantes que sobrevivem na superfície do lixro não se incomodam com o estatuto da diva e devoram-na na mesma.

Los Piratas del Mar de Plastico - Uma frase do conto de Paul Raven resume-o na perfeição: experimental sandbox for heterodox economic systems. No fundo, uma visão negativista de um futuro onde a combinação implacável entre austeridade e aquecimento global arrasou a economia do sul da europa. As vastas planícies da andaluzia, abandonadas pelo governo espanhol, são agora desertos de estufas explorados por conglomerados económicos que aproveitam a energia solar e a mão de obra barata maghrebina para produzir vegetais a baixo custo e elevado lucro. A investigação de uma jornalista contratada por um financeiro curioso sobre indústrias emergentes leva-nos a descobrir que a rentabilidade da produção de vegetais em zonas áridas é devida a criação de legumes transgénicos que facilitam o tráfico de drogas transatlântico. Nas ruínas de mais um previsível colapso provocado por interesses financeiros a curto prazo que depois de usarem todos os meios para sugar o máximo de lucro devastando as zonas onde intervéem, os habitantes começam a reconstruir a economia baseando-se em criatividade tecnológica e pensamento local - os tais sistemas heterodoxos.

199 The Various Mansions of the Universe - Bruce Sterling parte em busca do novo local nesta história onde um casal de pós-humanos procura uma casa onde se sinta bem. A pós-humanidade surgiu por acaso, no rescaldo de um acidente fatal para a mulher mas que a ciência biomédica/cibernética coreana consegue reverter. O marido voluntariou-se para os mesmos tratamentos experimentais, e tornam-se uma versão beta 1.0 de tecnologias de extensão de vida, que no caso da mulher se tornaram de ressurreição. A pós-humanidade leva-os a reavaliar a normalidade e partem, de cidade assolada pelo aquecimento global em cidade assolada pelo aquecimento global, em busca de poiso a condizer. Encontram-no num bunker futurista semi-submerso, tal como eles uma relíquia de utopias tecnológicas ultrapassadas pela marcha imparável da técnica.