sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Red Plenty


Francis Spufford (2010). Red Plenty. Londres: Faber & Faber.

A história não é só feita de factos, dados e estatísticas. É também, ou primordialmente, composta pelas histórias de quem viveu nas épocas passadas. Para melhor se compreender os tempos que já foram, não chegam relatos de feitos épicos ou análises às correntes que fazem mover as engrenagens da evolução histórica. As histórias, o que foi sentido por quem noutros tempos, é o elemento que confere humanismo à visão do passado. É isto que torna interessantes, por exemplo, as histórias orais, memórias da percepção daqueles que foram levados pelas enxurradas da história. Mas neste Red Plenty o passo é outro. Trata-se da história das tendências, factos e dados contada através de relatos que misturam ficção com facto histórico. Uma história real contada como um romance ficcional, misturando personalidades reais com personagens fictícias que encarnam tipologias de indivíduos.

Red Plenty olha para uma época de viragem na história da antiga União Soviética. Nos anos 50, findo o estalinismo, vitoriosos da II Guerra, após todos os sacrifícios e atrocidades cometidas em nome de um desenvolvimento industrial acelerado, a economia soviética parecia estar finalmente capaz de dar aos cidadãos o tão prometido paraíso proletário. A diminuição das privações, o elevar do nível de vida, o acesso a comida e bens de consumo sem necessidade de enfrentar filas de distribuição ou anos de espera pareciam, finalmente, possíveis. Spufford, através das suas histórias que se baseiam em factos e dados históricos, mostra-nos como a combinação de burocracias, ineficiências induzidas pela hiperbólica rétorica de agrado ao partido dominante, ideologias obscurantistas que impediam desenvolvimento científico e tecnológico em áreas chave da ciência e tecnologia, baixo nível de qualidade de uma produção mantida artificialmente elevada para cumprir objectivos estatísticos, e políticas de preços indutoras de pobreza real nos níveis de base da economia se aliaram à competição militarista com o ocidente para travar a utopia e transformar a sociedade soviética no monolitismo cinzentista que caracterizou as suas décadas finais.

Essencialmente, Spufford mostra-nos a insanidade de centralizar, sistematizar e planificar todo um complexo sistema económico como se de uma máquina bem oleada se tratasse. Ficam de fora os factores humanos e os imponderáveis. Alguns dos momentos mais hilariantes do livro contam-nos as elaboradas sabotagens provocadas pelos gestores das fábricas para culpar nas avarias ou defeitos de equipamento a incapacidade de cumprir as metas impostas pelos gabinetes de planeamento central. Spufford também captura os tempos de maior abertura no pós-estalinismo de Krushchev, com um retrato preciso deste colorido líder soviético, e o resvalar para o sufoco ideológico dogmático das eras que se seguiram.

O livro retrata a ciência, a economia e a política, mas fá-lo de forma brilhante através de pequenas histórias que nos levam dos escalões mais humildes à estratoesfera do regime soviético. Termina com uma nota amarga, com Spufford a citar um Krushchev deposto pelo comité central e exilado para uma luxuosa dacha a reflectir que "‘Paradise’, he told the wheatfield in baffled fury, ‘is a place where people want to end up, not a place they run from. What kind of socialism is that? What kind of shit is that, when you have to keep people in chains? What kind of social order? What kind of paradise?’" Frases reais, utilizadas num contexto ficcional que sublinha o falhanço da utopia soviética.