quinta-feira, 24 de julho de 2014

Homem das Neves



(1983). Homem das Neves. Moscovo: Ráduga.

Uma pérola da FC que descobri a vasculhar as caixas reaproveitadas como prateleiras da livraria-alfarraista Ler Devagar em Óbidos. Não a da igreja reconvertida, cuja visita se recomenda pelo bom gosto arquitectónico e pelo desconhecimento dos livreiros que lá trabalham dos livros que têm do género fantástico português. Podem lá encontrar livros da lendária e rara colecção da Caminho. Podem encontrar Macedo, Barreiros e Luís Filipe Silva. Procurem nas estantes de literaturas lusófona. E o arranjo arquitectónico das prateleiras é excelente, transformando a igreja num templo dedicado ao livro. Este livro foi apanhado na dependência que consegue o estranho milagre de misturar mercearia de produtos biológicos com livros usados, e que suspeito que funcione mais como atracção turística do que livraria séria, a avaliar pelos magotes que lá entram, torcem o nariz aos livros velhos e tiram a obrigatória fotografia. Ter a maior parte das prateleiras com livros inacessíveis à procura por estarem a roçar o tecto também não é o melhor dos indícios. Talvez seja embirração minha, mas a estratégia Óbidos Vila Literária parece estranha numa localidade conhecida pelas feiras medievais, vilas natais, festivais do chocolate e magotes de turistas que peregrinam ao longo da rua direita até ao castelo provando ginginha em copos comestíveis. A vila tem mais ruas, mas costumam estar ermas. Mas não me queixo. Venho bastantes vezes a esta zona e é um prazer passear pela vila, apesar do acotovelar de excursões, e passar aqueles belíssimos momentos que só os bibliófilos compreendem a vasculhar prateleiras repletas de livros. Já a ginginha dispenso. Not my cup of tea.

O livro é um achado. Editado poucos anos antes da queda do muro de Berlim, é um artefacto doutros tempos que me caiu nas mãos. Colige contos de ficção cientifica de autores soviéticos, traduzidos em Moscovo para português e editados por uma editora crente que a divulgação das obras dos autores russos irá fomentar uma melhor intercompreensão fraterna entre os povos. Não estou a ironizar, é o que está escrito na última página do livro, que incluiu uma morada em Moscovo, hoje certamente casa de algo muito diverso do que uma editora dedicada à promoção da fraternidade universal de estilo soviético. O livro faz parte de uma colecção literária dedicada à FC e aventura, traduzida com o algo inquietante nome de "biblioteca de ciência-ficção e aventuras". Leram bem. Ciência-ficção. Tradutores russos a traduzir do russo para português dá pormenores linguísticos desajeitados, e isso não se sente só nestas expressões.

A promoção da cultura soviética sente-se no tema, com uma FC de recorte progressista, confiante no poder da ciência e tecnologia. Os autores não são nenhuns Lem ou irmãos Strugatsky, mas são capazes de contar histórias divertidas e intrigantes nos pressupostos. O que a torna diferente de ficção anglo-americana nos mesmos moldes é a introdução de elementos propagandísticos, mais ou menos óbvios, nos contos. É evidente que tentam envangelizar o mundo português, no caso desta edição, para as virtudes da vida soviética. Algo que após estes anos todos, depois da queda e dissolução do império soviético, faz sorrir pelo carácter pitoresco. Junte-se a isso um conjunto de ilustrações bizarras e o artefacto ganha um gosto especial. Ilustrações bizarras, parece, é algo recorrente nestas edições.

História de Um Homem das Neves, de A. e S. Abramov, fala-nos dos prodígios de um génio da matemática, cujos trabalhos permitem saltos científicos inimagináveis. A sua misteriosa incapacidade de envelhecer, o desconhecimento das suas origens  e resistência aos frios gelados da zona siberiana onde se situa o instituto de investigação fazem correr o boato de que foi salvo no sopé dos himalaias durante a II guerra e que seria descendente dos lendários homens das neves. A verdade é mais extraordinária. O brilhante cientista foi o responsável pelos cálculos de uma missão de exploração de uma civilização extra-terrestre decadente, que teve a má pontaria de aterrar no meio de um campo de batalha. A nave avançada não resistiu às primitivas balas de alto calibre da artilharia soviética, que a confundiu com um dirigível nazi. O único sobrevivente é recolhido, amnésico, como um soldado russo ferido, e daí por diante segue-se um percurso académico brilhante, se bem que as fantásticas descobertas são apenas vestígios da memória de uma ciência mais avançada. Num toque dogmático, é-nos mostrado pelas recordações do alienígena o como uma civilização avançada se torna decadente, fechada sobre si própria, vítima da descrença no progresso científico, porque lhe faltava a necessária bipolaridade trazida pela esperança do socialismo soviético para contrabalançar as forças obscurantistas. É um toque subtil de propaganda, talvez adicionado para que o conto seja ideologicamente aceitável para publicação, e que vinte anos depois dá que pensar. Afinal, sem a bipolaridade da guerra fria vemo-nos como civilização ameaçados pelo aquecimento global ajudada a curto prazo por uma rapacidade neoliberal que se tornou possível precisamente com o fim de referências alternativas ao sistema capitalista que o obrigavam a manter alguns limites humanistas. Note-se que não estou a defender a perfeita validade dessas referências, uma vez que os sovietes depressa se assemelharam aos regimes que os precederam ou combateram.

As tuas mãos são como o vento - No primeiro conto de V. Firsov desta antologia um neuro-cientista luta com um dilema moral. Parte de uma equipa que conseguiu dominar a indução artificial de emoções, debate interiormente se deverá utilizar a tecnologia que ajudou a desenvolver para induzir paixão por si na mulher que ama, uma artista-cientista que trabalha no edifício ao lado do seu centro de pesquisas. Não o chega a fazer, porque a ética se sobrepõe à paixão.

Cuidado com o Canguru - O segundo conto de Firsov é uma visão humorista sobre burocracias, economia e civilizações extraterrestres num futuro utópico onde o dinheiro foi abolido, o que complica as transacções comerciais entre as milhentas civilizações da galáxia. O canguru do conto é o pérfido representante de uma civilização reaccionária que se aproveita da bolsa similar à dos marsupiais para roubar um documento importante para as relações entre a Terra e as restantes civilizações.

Água Morta, de I. Valentinov, é uma divertida pérola que oscila entre aventura pueril, fantástico, ficção científica e propaganda panfletária. O conto começa nos anos 20, quando um ingénuo comissário do partido enviado para o campo é assassinado por um perigoso ex-presidiário, preso por crimes contra o povo. O criminoso rouba-lhe os documentos e assume o papel de comissário soviético. Sempre temendo que seja descoberto, acaba por se tornar num excelente comissário, sempre a fazer progredir a região que tem a cargo, apesar de no seu interior odiar profundamente o progressismo soviético. Este vil vilão vê na invasão nazi a oportunidade para se vingar do sistema, tornando-se um temido comissário local ao serviço das SS e exímio torcionário de guerrilheiros soviéticos. Com o fim da guerra consegue sobreviver assumindo a identidade de outra das suas vítimas, passando despercebido como soldado sobrevivente na confusão do pós-guerra e escapando, novamente, à justa punição pelos seus crimes contra o povo.

Um destino melhor espera a sua vítima, deixada como morta numa ravina de onde pinga uma água com estranhas propriedades curativas. Em vez de morrer, vê-se miraculosamente curado. Apresenta-se no gabinete local da bondosa GPU (e escrever isto sobre uma das polícias secretas soviéticas já dá uma boa ideia do tom panfletário do conto). Como bom e fiel comunista ao serviço do estado, conta as suas desventuras mas é considerado louco e internado num hospício. Afinal, a pessoa quem ele diz ser anda a fazer um bom trabalho como comissário e a história das águas é demasiado fantasiosa. Internado num asilo, consegue travar amizades e convencer os médicos que não está louco. Mostrando grande promessa como estudioso, apesar da sua baixa formação, regressa à vida normal e equilibra um dia a dia de trabalhador ferroviário e fiel participante nos comícios com um exigente regime de estudos nocturno. Porque o nosso homem tem uma missão. Incapaz de convencer quem o rodeia da veracidade das águas milagrosas que não só o curaram como o rejuvenesceram, decide usar a ciência para provar que não está a mentir e usar esse conhecimento em benefício de todos (se ainda não perceberam como este conto é propagandístico, ainda vão tempo de o fazer). No instituto científico onde virá a fazer uma fulgurante carreira reencontra a filha de uma mulher que lhe deu abrigo na já longínqua noite em que sobreviveu à tentativa de assassínio. Apaixonam-se, e seguem em direcção à Bielorússia para uma missão de prospecção. Apanhados pela ofensiva nazi, juntam-se a um grupo de guerrilheiros e dedicam-se a combater o invasor fascista. Um dia, numa operação arriscada onde a mulher e o comandante do grupo são gravemente feridos, descobre outra fonte de água miraculosa. As vítimas são salvas, e o nosso herói, bom comunista e paciente sobrevivente de muitas adversidades, consegue que a mulher que ama rejuvenesça e ganhe a longevidade de que ele já goza. Mas ainda não é deste que consegue convencer o mundo da validade das águas curativas. Fora dos locais de recolha, perdem as propriedades curativas. E os locais conhecidos são arrasados em nome do progresso ou pelas batalhas da guerra patriótica (recordem-se, isto é FC soviética, eles têm outro nome para a II Guerra). Bons elementos do sistema soviético, vão progredindo como cientistas e alcançam as honrarias advindas dos seus esforços. Quando a mulher adoece, vítima de tuberculose, o agora cientista parte numa busca por outras fontes de água milagrosa, pois agora já sabe que o que as torna curativas é uma rara combinação de condições cientificamente comprováveis. Salva a mulher e ganhar um ainda maior reconhecimento científico. Finalmente vê a sua verdade reconhecida.

Há algo das torturas de Job nesta intrigante história, que mescla fantástico com policial e narrativa de combate. O vilão, culpado dos mais hediondos crimes, acaba sempre por escapar à justa punição enquanto o dedicado e fiel comunista sofre tribulações inesperadas. O final de um é amargo, e o do outro a recompensa esperada, ideologicamente plausível, para um esforçado quadro que colocava o seu saber ao serviço do povo e da nação. O paradoxo nunca assumido é que a violência do vilão é o que torna o verdadeiro herói capaz de seguir um destino mais interessante e recompensador do que o previsto como humilde comissário de um soviete rural. O tom de aventura é divertido, embora a história tenha inconsistências literárias talvez explicáveis pela tradução. Mas o que a torna digna de nota é o seu óbvio carácter propagandístico, apregoando aos leitores as virtudes do bom e fiel cidadão soviético.