sexta-feira, 25 de julho de 2014

Ficções

Polynia: Glaciares e o consumado urbanismo de Mieville colidem neste conto que me fez recordar o título Sometimes they come back de Stephen King. O título, porque o resto do conto não tem nada a ver. Os céus de Londres são infestados por uma praga de icebergs voadores, que se limitam a flutuar sobre os telhados, desafiando qualquer tentativa de exploração ou explicação. Com o passar do tempo acabam por fazer parte da ecologia arquitectónica da cidade, transformando o clima local como espíritos materializados das calotas polares que o aquecimento global fez desvanecer nos oceanos. Mistério científico, elemento paisagístico, desafio para urban explorers intrépidos que se apercebem que nos icebergs o visível é uma pequena parte do que existe. Londres tem os seus gelos, os prédios de Bruxelas são infestados por incrustações de coral e nas fábricas japonesas irrompem periodicamente pragas de floresta virgem. Simbólico, que Mieville tenha escolhido estes três ícones da destruição provocada pelo aquecimento global, para dar forma a este conto.

Single-bit Error: Num conto magistral, Ken Liu mistura o conceito bizarro de erros de hardware induzidos por raios cósmicos com uma homenagem a Hell is the absence of God do consumado contista Ted Chiang. Um programador com veia de poeta lida com a morte da namorada, uma rapariga que confessa ter sido transformada pela visão de deus. Ao deduzir que o acidente mortal foi provocado por um protão que induziu um erro de hardware na centralina do carro, causando um erro de software que inverteu os sistemas de aceleração e travagem, pergunta-se se este tipo de acasos não estará por detrás das visões divinas. Procura formas de induzir o êxtase espiritual, sem sucesso, até que um dia, por acaso, uma partícula de luz estelar lhe causa a modificação mínima num neurónio que lhe dá, por breves momentos, um vislumbre do divino. Nesta narrativa brilhante Liu, talvez um dos mais metafísicos dos escritores de FC contemporâneos, integra teorias da neurociência sobre a consciência religiosa e a ideia estranha mas plausível de erros raros induzidos em chips por efeito de raios cósmicos.

Report on an Unidentified Space Station: Um grupo de viajantes do espaço explora uma pequena estação espacial abandonada. Quanto mais exploram, mais o espaço que os rodeia parece expandir-se. A cada novo passo a pequena estação aumenta de dimensões, até englobar o planeta, o sistema, o universo inteiro, em constante expansão. Uma curiosa metáfora de J. G. Ballard, naquela prosa seca e perfeita que só este autor conseguia, originalmente publicado naquela lendária edição da Semiotext(e) SF, dedicada aos mundos da ficção cientifica.

Gold Mountain: E se... o mundo fosse diferente de como o conhecemos? É um conceito recorrente na ficção científica, com as estruturas e ideias específicas da história alternativa. Normalmente este tipo de histórias centra-se num acontecimento histórico que ou não aconteceu ou aconteceu de forma diferente, alterando a continuidade histórica como a conhecemos. Chris Roberson escolhe outro caminho. Olha para um futuro presente sem nos explicar como lá chegámos. Neste seu mundo a China imperial nunca perdeu o peso civilizacional e, no dealbar do século XXI, prepara-se para colonizar o planeta vermelho a partir da sua base orbital, cidade ligada ao continente por um elevador espacial. A história centra-se numa arquivista chinesa de origem americana que se dedica a registar as memórias dos construtores do elevador, mão de obra barata trazida das américas que ainda sobrevive numa China agora mais tolerante mas que durante décadas os reprimiu como elementos indesejáveis, excepto para trabalho braçal de alto risco. A Europa não merece sequer menção e sabemos que as américas estão divididas entre colónias árabes na Califórnia, estados de descendentes europeus e o império dos mexicanos autóctones. Escrevo américas para situar, porque o nome dado ao continente é de origem viking. Um pouco similar à Roma de Silverberg, mas com a China no lugar de potência hegemónica. A inversão à história dos coolies asiáticos e questões raciais, com os homens brancos no papel de seres humanos secundarizados, obriga a reflectir nos caminhos trilhados pela história real. Quase diria que Roberson poderia ter inventado uma espécie de fardo do homem amarelo, a civilizar os bárbaros das brumas europeias, e se calhar chegou lá, noutras obras deste mundo ficcional.